Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) Fernando Pinto Amaral e João
Barrento, entre outros, analisando a poesia portuguesa da pós-modernidade,
diagnosticaram-lhe um generalizado e difuso sentimento de melancolia. Ora, em
Inês Lourenço não encontramos propriamente um fio condutor impregnado de melancolia,
mas sim um turbilhão de sensações, resultantes de um jogo de espelhos que
reflectem a realidade, o quotidiano, o corpo, o sangue seiva da vida, a herança
indecifrável de respirar. Engana-se o leitor que pensa encontrar na sua obra
uma poética mais ligada ao instinto carnal, voltada para uma recondução do
indivíduo às suas raízes, à sua animalidade. Nela, encontramos antes o Corpo
como imagem, como espelho cortante, numa ligação umbilical com o Cosmos. Neste simulacro de horizonte, a tónica recai
no universo feminino, no ar, na liberdade, no vermelho sanguíneo, no corpo
reflectido, onde, como refere Sophia Andresen, os espelhos acendem o seu
segundo brilho (Geografia), brilho que extravasa o corpo feminino, a realidade,
a circunstância, num despertar de sentidos (sugeridos, por exemplo, pelo título
Carpe Diem). A Cama Voadora de Frida Kahlo, não será antes o consubstanciar de
uma poesia que mais do que minimalista (como referiu Fernando Guimarães, entre
outros) é o fruto desse laço umbilical com que se pinta a relação Corpo/Cosmos?
É precisamente nesta relação que, entrando no espelho cortante, parecem
misturar-se as tintas da tela com a tinta que escorre da última gota da pena da
poeta. Se na tela do poema Inês Lourenço escolhe
os tons de vermelho sanguíneo, num claro contraste com o azul intenso para
encobrir o corpo, procurando entrar no espelho cortante do tecto, numa
tentativa de provocar a espessura das matizes; também Frida Kahlo cobre o seu
quadro de tintas representativas da condição feminina, da sua relação com o
Corpo. De facto, o quadro mostra-nos a artista toda nua, deitada numa cama de
hospital, que é demasiado grande em relação ao seu corpo. O lençol branco por
debaixo do seu baixo-ventre está ensopado de sangue. Por cima da barriga estão
três fitas vermelhas, como se fossem artérias, que ela segura com a mão
esquerda, e que têm seis objectos atados às suas pontas – símbolos da sua
sexualidade e da gravidez falhada. A fita que está por cima da poça de sangue à
volta da pélvis transforma-se num cordão umbilical e leva-nos até um feto masculino
de tamanho invulgar em posição embrionária. Por cima da cabeceira da cama, à direita,
vê-se um caracol a flutuar, símbolo não só da interrupção da gravidez, como
também da vitalidade e sexualidade, uma vez que a sua casca protectora não é
mais do que símbolo da concepção da gravidez e do nascimento. Ao sair e ao
esconder-se na casca, relaciona-se com as fases crescente e minguante da Lua,
que por sua vez representa o ciclo feminino e, consequentemente, a própria
sexualidade (amplamente retratados por Inês Lourenço neste seu percurso de
vinte anos). O modelo anatómico da parte de baixo de um
corpo, de cor salmão, que está por cima dos pés da cama, assim como o modelo de
osso em baixo, à direita, indica-nos a causa do aborto: o dano da coluna e da
pélvis, no fundo, o que impossibilitou Frida Kahlo de ter um filho. O
maquinismo que vemos em baixo, à esquerda, também deve ser entendido neste
contexto. Representa, provavelmente, uma parte de um esterilizador a vapor,
como os que se utilizavam nos hospitais naquele tempo. A orquídea que está ao
centro, por baixo da cama, é também ela símbolo de sexualidade e de emoções. Neste
cenário pintado por tintas sanguíneas, a pequena figura da artista parece
evocar a solidão e a vulnerabilidade perante uma vasta planície, que é
simultaneamente reflexo dos próprios sentimentos de Frida Kahlo, mas também
símbolo de progresso tecnológico, onde imperam barras de inox e tubos, num nítido
contraste com o destino humano da artista». In Cidália Dinis, Corpo
Reflectido, Trabalho apresentado no seminário Caminhos da Poesia Portuguesa
Contemporânea, do Modernismo ao Pós-modernismo, Revista da Faculdade de Letras,
Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], Wikipedia.
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