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Rennes
le Château. 18 de Junho de 1891
«(…)
Bérenger tinha-se deixado cair numa cadeira. a olhar para o vazio. Tinha os lábios
entreabertos e o rosto ensombrado pelo cansaço. Vinte e duas horas de trabalho.
Vinte e duas, o Mat, o número do conhecimento reservado à elite. E, no entanto,
podiam ter sido vinte e dois segundos, ou vinte e dois anos. Era incrível como o
tempo se contraía e dilatava. A amargura tinha-se apossado da sua alma, e estava
prestes a renunciar. As noites, os dias, os meses sucediam-se uns aos outros, sem
que os manuscritos revelassem o seu segredo. Mantinha-os desenrolados sobre a mesa,
com os cantos seguros com pedaços de telha. Ansiava entender os sinais,
conhecer a sua origem, avançar na senda do conhecimento. Mas faziam-lhe falta chaves...
Pedi-las a Boudet? Uma loucura. A velha raposa arrancava-lhos da mão para os
usar em seu proveito. E se falasse com Billard? Era demasiado rápido. O bispo, que
era um negociante, oferecer-lhe-ia a seguir um bom preço, e ele mesmo era capaz
de dizer que sim. O espólio vai ser meu, repetiu mentalmente: o espólio. Porquê
precisamente essa palavra? Que caminho o tinha levado até ali? Deteve-se um bocado
a reflectir. Voltou ao quarto pergaminho e releu as frases do Novo Testamento,
demorando-se nas palavras coladas umas às outras, nas misteriosas palavras acrescentadas.
Nada... Não entendia nada. A sua mente associava ideias incoerentes, as frases que
reconstruía não compunham nenhuma mensagem. Espólio... Espólio... Estou a ficar
louco. Nem sequer é uma palavra latina, mas sim alemã. Não há uma única palavra
parecida com espólio, nem captura, nem restos, nem tesouro.
O temor
da superstição agravava a sua incompreensão. Levantou o punho para o descarregar
sobre o manuscrito, quando uma silhueta preta chamou a sua atenção atrás da
janela. Não reconheceu de imediato o homem gordo que se aproximava da
sacristia. O desconhecido avançava arrastando os passos devido ao cansaço. Era Elias,
o judeu. Bérenger correu para a janela e gritou: meu amigo! Finalmente está aqui.
Elias parecia absorto numa ilusão. Deteve-se, cabeceando ao ritmo latejar do
peito. Levantou a cabeça, com os olhos enevoados por formigueiro negro, e viu Saunière
a sorrir lá em cima. Ah, Saunière! Pensei que nunca chegaria aqui... Abra, estou
a morrer de sede. Desço já! Bérenger desceu a escada a correr. O russo já tinha
entrado em casa. Os seus olhos vivazes percorriam os cantos, apoderando-se dos objectos.
Abraçou Bérenger e deixou-se cair numa cadeira. Esticou as pernas pesadas, o corpo
dorido. Amaldiçoou pela última vez aquele corpo gordo, que era a contrapartida da
sua genialidade: um dia, toda aquela gordura acabaria por levá-lo à morte. Veio
por onde?, perguntou Bérenger, servindo-lhe um copo de vinho. Pelo trilho... A
caminhar... Existe algum outro caminho? Elias esvaziou o copo de vinho. Agora dê-me
água. Naturalmente... Há vários caminhos de cabras, mas pelo seu aspecto,
parece que teve de subir escalando um precipício. E a sua bagagem? Chegará a devido
tempo, dependendo do que tiver para me contar. Não creio que tenha feito este caminho
para nada... Estou enganado? Bérenger espiou os olhos escuros de Elias, que pareciam
capazes de vislumbrar os mundos do além.
Não encontrou
nenhuma maldade nele. Pelo contrário, no seu olhar havia algo de inefável e subtil:
era o amor. Posso confiar nele. Descobri uns manuscritos na igreja... Pensei que
o senhor me poderia ajudar. Depende do seu conteúdo, e do que quiser que eu faça.
Não temos pressa... Tranquilize-se. Estou perfeitamente tranquilo! Vejo para lá
das aparências. O sofrimento consome-o. Bérenger
engoliu em seco. Elias dizia a verdade. Tinha visto a sua alma. Não conseguiu resistir
ao desejo de lhe revelar as suas angústias. Sou um homem desgraçado... Não pense
que o digo com narcisismo, não me gabo das minhas desgraças. Mas sinto-me
perseguido pela má sorte e a contrariedade. Está a falar-me de uma intuição? Não!
Então é o resultado de um raciocínio. Explique-se, dê-me elementos para avaliar.
Elias agarrou-o pelo braço para o obrigar a falar. O seu rosto endureceu-se. Agora,
uma luz intensa brilhava-lhe nos olhos. Porque é que agora tenho medo deste judeu?,
interrogou-se Bérenger, estremecendo. Porque Deus o tinha feito tão genial? Não
devo deixar-me subjugar!
Não tente
dominar-se, prosseguiu Elias. É natural sentir medo quando nos sentimos ameaçados.
Deve aprender a manter a calma. O segredo consiste em separar a realidade dos
pesadelos, e eu não sou um pesadelo. Não procure adivinhar quem eu sou. Averiguá-lo-á
quando souber reconhecer a essência de todas as coisas que o rodeiam. Ainda não
está pronto para ser iniciado. O egoísmo limita as suas possibilidades... Fale!
Confie em mim. Bérenger deixou o olhar vaguear pela divisão. Os objectos pareciam
envolvidos numa bruma avermelhada e luminosa. Não conseguia distinguir a posição
dos ponteiros do relógio, apesar de estar ao alcance da sua mão. O mundo esmigalhava-se,
pouco a pouco a sua consciência adormecia. Fechou os olhos e escutou a voz do
judeu, por cima do ronronar do seu próprio sangue: ... eu sou o seu único amigo...
Deixe-se levar... Fale...
Pouco
a pouco, Elias afrouxou os dedos até soltar o braço de Bérenger. Depois, passou
a mão esquerda diante dos olhos do sacerdote. Com os seus dedos compridos e finos,
traçou no ar um sinal de poder que convergia na fronte de Bérenger. O sacerdote
deixou de se debater. O frio invadiu-lhe o corpo e, por momentos, pôs-se a tremer
e julgou que o seu fim tinha chegado. Logo a seguir sentiu a tibieza. A primeira
recordação acudiu à sua mente com precisão diabólica: era o odor dos cabelos de
Marie. Recordou a forma dos seus lábios, as ancas largas onde ansiava perder-se.
Tudo começou no dia em que ela chegou...» In Jean-Michel Thibaux, O Mistério do
Priorado de Sião, Rennes-le-Chatêau, 1888, 2004, tradução de Jorge Fallorca, A
Esfera dos Livros, 2006, ISBN 989-626-019-2.
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