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A ilha
dos Guanacos
«(…)
Frequentemente sonhava com a visita do arcebispo da América do Sul. Não tinha o
prazer de conhecê-lo, mas sempre lhe parecera gentil e majestoso, vagamente parecido
ao carteiro da sua aldeia. Aperfeiçoara essa fantasia até a transformar numa
gravura grandiosa; o arcebispo chegava à missão para restaurar o Evangelho e saía
do barco num entardecer inesquecível. Havia ovelhas a pastar na margem e o chão
estava cheio de margaridas e grandes bandos de papagaios assobiavam entre as árvores.
Do bosque chegavam os gritos dos seus sobrinhos de Londres que davam ferozes
tacadas nas bolas de críquete. Era o mesmo cenário acolhedor dos dias de Dobson,
mas os barcos já não paravam. Contudo, a missão mantinha os seus atributos intactos:
um fogo aceso desde sempre, várias vacas encurraladas, um mastro pintado de vermelho,
canteiros de malvas e um perfume a café que chegava até ao molhe. Vista da
coberta de um navio podia perfeitamente confundir-se com uma paisagem irlandesa
e era uma tentação para qualquer um. De noite a luz durava até tarde. Não era
preciso muito talento para imaginar a viúva a fazer geleia ou a rever a tradução
do Novo Testamento para o canalês. Eram raras as visitas. Pouco capitães se mostravam
dispostos a suportar passar uma noite junto da viúva e do seu licor enjoativo, nem
a simular eternamente que o reverendo expirara durante uma missão pastoral e não
entre as pernas da sua convertida preferida. Em vida do reverendo, o seu escandaloso
comportamento era o gozo de toda a costa. Os barcos anunciavam a sua vinda com grandes
buzinões que soavam como uma homenagem às proezas do pastor. A praia povoava-se
de canoeiros alvoroçados e o reverendo trotava até ao cais com um sorriso entre
os dentes. Este comportamento dos capitães contrastava hoje em dia com o seu tímido
toque ao virar a rocha Charles. que chegava ao coração da viúva como mais uma prova
da duplicidade dos homens e da sua falta de preparação para a morte. Teria desejado
que os barcos mudassem de rota. Porque davam cabo das suas recordações. De
qualquer modo estava resolvida a lutar contra a maledicência dos forasteiros. Tinha
jurado que aquelas saudações hipócritas jamais chegariam a prejudicar o seu tesouro:
a memória dos dias em que merendava com Dobson no Saint James Park enquanto desenhavam
a missão prometida sobre o papel dos bolos.
De vez
em quando perguntava de que é que estava à espera para se ir embora. Foi oque lhe
perguntou o capitão do Spectre numa noite de Inverno. Sabia de cor todos
os argumentos da viúva para adiar a sua partida e também conhecia a famosa visão
do arcebispo. Com algumas goladas a menos nem sequer os teria mencionado. Mas estavam
em pleno Agosto e as sombras da tarde mostravam que Abingdon era algo digno de ser
abandonado. O capitão desceu do barco já bem hidratado, com a sua vocação na mó
de cima e disposto ao salvamento. Os canaleses brilhavam pela sua ausência. Nem
sequer se viam aqueles espantalhos do País das Chuvas Perpétuas, os únicos que
ainda frequentavam os canais do arquipélago e que de vez em quando chegavam à missão
empurrados pela miséria. A viúva recebeu-o com um sorriso, ainda estava longe de
supor que a partir dessa noite o capitão do Spectre engrossaria a lista dos
visitantes indesejáveis. Desarrolhou uma garrafa de ginjinha, sem imaginar que em
breve cessariam as dúvidas sobre o regresso a Inglaterra. Então de que falaram?
No dia seguinte o capitão não recordava uma palavra. Mas certamente abordaram os
temas de sempre: a viagem a Inglaterra, as canalhices de Dobson e a visita do arcebispo
da América do Sul.
Foi a
viúva quem falou deste último assunto, obcecada com o seu propósito de reabilitar
a missão. O capitão estava a terminar a bebida, já não pretendia repatriar a viúva
e estava unicamente interessado em voltar a bordo. Tinha perdido de vista as
luzes do barco e temia que estivesse outra vez a nevar. A viúva começou a
recitar de cor todas as suas cartas de Londres. O capitão olhou para o fundo do
copo. Algo que brotava na sua cabeça serviu-lhe para rematar a conversa: deixe-se
dessa do arcebispo. Nunca lhe verão o cabelo por estas bandas. Quer saber porquê?
Ela olhou-o com o coração dilatado». In Eduardo Belgrano Rawson, Para lá da Terra
do Fogo, 1991, 1999, Quetzal Editores, 2009, Lisboa, ISBN 978-972-564-784-4.
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