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«(…)
E tantas vezes senti a casa estremecer com o Aiou-ou-ou e uma garrafa de rum,
os vizinhos todos a participar por amor à vida, subjugados pelo medo da morte,
com cada um a cantar mais alto para evitar ser chamado à ordem. Pois quando lhe
davam estes ataques, era o parceiro mais possessivo que já se viu; com palmadas
na mesa ordenava o silêncio completo; lançava-se numa paixão de raiva se lhe
faziam uma pergunta ou, outras vezes, se não lhe faziam nenhuma, concluindo que
não estavam a dar ouvidos à sua história. Nem deixava ninguém sair da estalagem
até ele próprio ter bebido a ponto de cair de sono e ir de roldão para a cama. As
narrativas eram o que mais assustava as pessoas. Eram histórias terríficas: de
enforcamentos, do castigo da prancha no mar, tempestades, as Tortugas Secas,
feitos selvagens e lugares no continente espanhol da América. Pelo que contava,
devia ter vivido toda a vida entre os piores malfeitores que Deus jamais pusera
sobre o mar; e a linguagem em que as contava chocava os nossos simples aldeões
quase tanto como os crimes que descrevia. O meu pai estava sempre a dizer que a
hospedaria acabava em ruína, porque as pessoas dentro em breve deixariam de lá
entrar para serem tiranizadas e oprimidas, e ficarem arrepiadas à hora de
deitar; mas em verdade creio que a presença dele nos fez bem. Na altura as
pessoas andavam atemorizadas, mas ao recordar até gostavam daquilo; era um rico
motivo de excitação para a tranquila vida de província; e até corria entre os
mais jovens a pretensão de o admirar, chamando-lhe um marujo dos antigos e nomes
semelhantes, com a afirmação de que se tratava do género de homem que fizera
temível o poderio inglês no mar. De facto, por um lado, apostava em
arruinar-nos, porque se deixava ficar semana após semana, e por fim mês após
mês, ao ponto de muito depois de todo o dinheiro se ter esgotado ainda o meu
pai não ganhar ânimo para insistir em receber mais. Se tocava no assunto por
acaso, o capitão fungava tão forte que mais parecia um rugido e, só com um
olhar fixo, obrigava-o a sair. Vi-o a retorcer as mãos depois duma destas
recusas, e estou certo de que a preocupação e o terror em que o meu pai vivia
muito lhe devem ter precipitado a morte precoce e infeliz.
O
capitão nunca mudou de vestuário durante todo o tempo que esteve connosco, com
a excepção de ter comprado uns pares de meias a um vendedor ambulante. Desde o
dia em que lhe caiu uma das abas do chapéu que a deixou ficar pendurada, embora
fosse um aborrecimento quando havia vento. Recordo o aspecto do casaco, que ia
remendando no quarto e que, para o fim, não era senão remendos. Nunca escreveu
nem recebeu qualquer carta e nunca falava com ninguém a não ser com os
vizinhos, e até com estes, a maior parte das vezes, só quando estava cheio de
rum. Quanto à grande arca de porão, nenhum de nós a tinha visto aberta. Uma
única vez lhe fizeram frente, e foi já perto do fim do meu pobre pai, na fase
avançada do definhamento que o levou desta vida. O doutor Livesey veio ao fim
da tarde ver o doente, aceitou da minha mãe um parco jantar e foi até à sala
fumar cachimbo até lhe trazerem o cavalo da aldeia, pois não tínhamos estábulo
na velha Benbow. Segui-o e lembro-me de notar o contraste que o médico limpo e
asseado, com a cabeleira empoada e branca como neve e os olhos brilhantes e
negros, o porte agradável, fazia com os labregos desajeitados e, mais do que
todos, com aquele espantalho sujo, maciço e remelento que era o nosso pirata,
sentado e cheio de rum, de braços atravessados na mesa. Bruscamente, ele, quero
dizer o capitão, pôs-se a bradar a eterna cantiga: quinze homens na arca do
morto, aiou-ou-oa e uma garrafa de rum! Aos outros levou-os a bebida e o diabo
aiou-ou-ou e uma garrafa de rum!» In Robert Louis Stevenson,
A Ilha do Tesouro, 1882/1883, Edição Clube do Autor, 2015, ISBN
978-989-845-208-5.
Cortesia
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