quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Ensaio de História Política. 1258-1264. O Triunfo da Monarquia Portuguesa. José Mattoso. «Deixa de surgir como uma visita do céu para repor a justiça e a paz, mas passa a estar presente, sempre e em toda a parte, por intermédio dos que ele coloca em cada circunscrição territorial…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A eventualidade era real porque no reinado anterior muitos juízes e mordomos régios tinham sido mortos, mutilados ou espancados por tentarem cobrar os direitos do soberano. Por isso permaneceu com a sua corte em Guimarães, em Braga e no Porto desde 30 de Março até ao fim de Julho. Neste mês, verificando que até ali tudo tinha decorrido pacificamente, dirigiu-se a Coimbra e Leiria, onde passou o resto do Verão e o Outono. Luís Krus, num estudo fundamental, mostrou como as inquirições de 1258 representam uma autêntica revolução em termos políticos, sociais e mentais. Ao confiar a missão a letrados, Afonso III impõe ao meio rural e senhorial um sistema de valores que tem na lei, na escrita e na representação política os seus mais fortes apoios ideológicos. É nestes apoios que se baseia a administração régia para se impor como instância decisória acima das comunidades locais regidas por costumes transmitidos oralmente e sujeitos à arbitrariedade dos senhores nobres e eclesiásticos. O rei deixa de aparecer como um longínquo representante de Deus encarregado de assegurar a paz e a justiça para se apresentar como aquele que dita a lei e a faz cumprir independentemente de poderes, costumes e privilégios locais. O novo sistema de valores não se difunde por meio de qualquer propaganda doutrinal, mas por meio da acção prática e do exemplo dado por quem demonstra competência para o fazer. É uma prática que (serve) de exemplo, em primeiro lugar, aos funcionários régios locais: deixam de estar à mercê das humilhações perpetradas pelos senhores locais para poderem reivindicar uma autoridade da mesma natureza e emanada da mesma fonte que os próprios inquiridores, aquela que eles exerciam com tanta confiança em si mesmos. Ser funcionário régio passa também a significar o saber, o prestígio, o fascínio da detenção da memória.
A acção prática executada pelos inquiridores constitui para toda a população anúncio de uma atitude inaudita. Era como se a sua viagem fosse uma espécie de missão para proclamar a boa nova, anunciando o fim da arbitrariedade e das violências que tinham dominado os vinte anos do reinado anterior. Ora a mensagem chegava a todas as freguesias e envolvia directamente a maioria da população local, mesmo os mais pobres. Para se compreender a sua amplitude basta dizer que só em Entre Douro e Ave foram directamente inquiridas 3414 testemunhas. Em certos julgados mais populosos, como os da Maia e de Guimarães, ouviram-se mais de 500 testemunhas. A demonstração foi, portanto, sistemática, abrangente e espectacular. Os camponeses acostumados a práticas tão diferentes não podiam esquecê-la facilmente.
Em terceiro lugar, as insistentes perguntas dos inquiridores demonstravam que não bastava o consenso comunitário para legitimar os usos e direitos. Era preciso consigná-los por escrito. Ao arbítrio pessoal, aos acordos orais facilmente esquecidos e violentados, devem substituir-se os contratos jurídicos. A lei deixa de ser aquela que o senhor dita por meio do seu banus e como intérprete incontestado do costume. Tem de estar fixada em pergaminhos que desafiam o tempo e permanecem iguais para além da morte de quem os lê. Finalmente, a missão dos inquiridores torna-se uma demonstração prática de que entre o rei e a população passará a interpor-se a representação; e quem a irá assegurar não vão ser os ricos-homens governadores das terras, que exerciam o seu poder em nome próprio, mas os funcionários e letrados, a aristocracia cortesã. O rei passará a viajar muito menos.
Deixa de surgir como uma visita do céu para repor a justiça e a paz, mas passa a estar presente, sempre e em toda a parte, por intermédio dos que ele coloca em cada circunscrição territorial para impor a sua vontade e fazer cumprir a lei. Ora esta imensa revolução abrangeu todo o norte do reino, justamente aquela região em que o poder régio sofria maiores atropelos por parte de leigos e eclesiásticos. No resto do país não eram precisas inquirições. Aí o regime municipal preservara, na prática, as noções de direito público e o rei surgia como o senhor directo da população, apesar das liberdades e privilégios concelhios. Que fez o rei com o resultado dos depoimentos tão escrupulosamente registados pelos seus escrivães em longos rolos de pergaminho? Aparentemente, nada. É uma das surpresas que este período da acção política de Afonso III suscita a quem o examina. O mais irritante, para o historiador, é não saber se este vazio se deve a uma lacuna de informação ou se de facto o rei se limitou a entregar o cadastro ao mordomo-mor para ele saber o que podia exigir aos mordomos locais como pagamento das rendas devidas à coroa. Quem lê hoje o estendal de sonegações feitas pelos senhores locais (ou interpretadas como tal pelos inquiridores) esperaria que o rei tomasse medidas claras e vigorosas para assegurar a eficácia da cobrança. Ora, se alguma coisa mudou, não restam disso vestígios evidentes. Não é impossível que uma análise muito pormenorizada dos actos administrativos revelasse algumas alterações da prática; mas para isso seria necessário proceder a levantamentos minuciosos e sistemáticos sobre centenas ou milhares de documentos. Talvez um dia algum investigador mais escrupuloso e paciente se disponha a tentar esta tarefa de resultados incertos. Se a documentação actualmente existente é de facto representativa das acções e da política régia, pode então admitir-se que Afonso III se limitou a consolidar as formas de execução prática dos valores ideológicos representados pela escrita e pela imposição da lei, pela fidelidade dos seus representantes locais, pelo respeito a eles devido e pela difusão da noção de representação. Ou seja, por meio de uma política administrativa que não deixou vestígios directos na documentação. Por meio da eficácia burocrática. O mais provável é que se tenha verificado um aperfeiçoamento gradual da máquina administrativa, e não uma mutação brusca». In José Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História Política, Revista Análise Social, volume XXXV, 2001.

Cortesia de RASocial/JDACT