sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval. José Mattoso. «O toque dos sinos baseava-se na crença de que o seu timbre afastava os espíritos malignos que acorriam junto dos cadáveres. O fechar os olhos…»

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«(…) Nalguns casos, porém, o seu significado não é evidente. Tomemos, por exemplo, o sentido dos prantos, das lamentações ou do recurso a carpideiras. Aparentemente, e na interpretação moderna, trata-se de uma forma de exprimir tristeza, de patentear emoções de aflição pela perda do morto. Um estudo mais atento não confirma este sentido. Assim, as crónicas medievais, que acentuam até ao paroxismo as manifestações de aflição por ocasião da morte dos reis, sugerem que estas se destinam como que a esconjurar ou neutralizar a perturbação cósmica e social que ela normalmente traz ou pode trazer à sua intensidade deveria ser tanto maior quanto maior fosse a ameaça de perturbação trazida pela morte. Sendo assim, trata-se, de novo, de uma forma de defesa contra a ameaça de desordem e de desagregação que a perda de um membro traz ao grupo a que ele pertencia como é evidente, a ameaça é tanto maior quanto mais importante era a função que ele exercia no seio do grupo. Podem, decerto, interpretar-se no mesmo sentido práticas tais como o silêncio que se impõe aos participantes nos funerais, a abstenção de actividade sexual durante o luto, a condenação das segundas núpcias da viúva, o toque dos sinos nas exéquias ou o fechar os olhos dos recém-falecidos. O silêncio representa uma forma de paralisação da vida, ou de concentração das forças vitais num momento em que a morte ronda a comunidade. A abstenção de actividade sexual impõe-se para que ela, no momento em que a morte se aproxima, em vez de transmitir a vida, não proporcione a morte.
A condenação das segundas núpcias da viúva (como acontecia com as rainhas dos Visigodos) destina-se a evitar a mesma eventualidade. O toque dos sinos baseava-se na crença de que o seu timbre afastava os espíritos malignos que acorriam junto dos cadáveres. O fechar os olhos dos recém-falecidos decorria da ideia, especialmente evidente em lendas germânicas e nórdicas, de que o seu olhar era mortífero. Em suma, os rituais das exéquias estão cheios de elementos que se destinam a evitar a contaminação da morte e a garantir a manutenção da vida da comunidade, afectada pelo desaparecimento de um dos seus membros. Os rituais que procuram intervir positivamente no processo de passagem da vida para a morte têm, em última análise, o mesmo sentido. Porém, resultam mais directamente de crenças que não interpretam essa passagem como um processo imediato, mas gradual.
A passagem seria como que uma viagem, e até uma viagem longa, cheia de peripécias e de perigos. Estas crenças têm dois aspectos muito concretos: a de que o espírito não abandona imediatamente o corpo depois da morte; e a de que o morto só o é verdadeiramente quando termina a decomposição do cadáver e se reduz a ossos. O perigo de perturbação dos vivos pelo morto torna-se, portanto, especialmente grande durante esse período de transição. Impõem-se as preces propiciatórias que lhe trazem o sossego, especialmente em fases consideradas críticas, como ao fim do terceiro dia, do sétimo, do trigésimo, do quadragésimo, ou do aniversário. Com efeito, relacionavam-se com estes períodos as fases de decomposição do cadáver e de afastamento progressivo do espírito para o mundo invisível. Tendia a identificar-se a redução a ossos com a entrada final do morto na comunidade indiferenciada dos antepassados, em que ele, pelo menos em certas culturas, perdia a sua identidade individual. Como é evidente, relacionam-se com estas crenças os rituais em torno da exumação e trasladação dos ossos, o culto das relíquias (que podem não ser só de santos, como acontece com as cabeças de saludadores, à reunião de ossários (em que os esqueletos e as caveiras se misturam numa multidão indiferenciada). O exame destas práticas, mais frequentes e importantes em certas culturas, mostra que elas não têm nada de macabro». In José Mattoso, Poderes Invisíveis, O Imaginário Medieval, 2001, Temas e Debates, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-644-233-0.

Cortesia de TDebates/JDACT