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de wikipedia e jdact
«Considera-se
geralmente que a descrição não idealizada do corpo humano, da sua patologia e
da sua fisiologia, do pormenor físico ou da perturbação psíquica, constitui uma
conquista da literatura do século XIX e, em particular, das estéticas realistas.
A promoção romanesca do corpo – a corporização e a sexualização das personagens
– integra a instalação, na segunda metade do século XIX, da temática física no
romance, e a consequente criação de uma poética romanesca do corpo.
Segundo Peter Brooks, o realismo corresponde a duas tendências simétricas e
complementares: a da semiotização do corpo e a da somatização da
narrativa. Esta nova importância (dir-se-ia quase obsessiva) concedida à carnalização
da personagem aparece associada a uma visão determinista e materialista da
individualidade; e irá interagir com a própria modelização romanesca,
implicando-lhe uma generalizada renovação e refiguração. Na verdade, o romance
realista constitui, em muitos sentidos, uma totalidade orgânica,
sistemática e coerente.
Na
ficção de Eça de Queirós, quase sempre os protagonistas se caracterizam como
detentores de doença ou de saúde (às vezes apenas mental). De facto, a saúde e
a doença são traços relevantes na personagem queirosiana. Desde Prosas
Bárbaras, os dois termos constituem referências axiais do autor, usadas no
campo estético-literário. Em carta a Carlos Mayer, datada de 1867, Eça de Queirós
divide os dois antigos bandos dos seus companheiros de Coimbra segundo a sua
pertença aos campos da saúde ou da doença: havia nesse tempo, por
um lado, os clássicos, os saudáveis; e havia, por outro, os românticos, os
doentes. Os primeiros preferiam o real circunstancial, reproduzem costumes; aos
segundos só interessava a alma humana universal. Eça declara-se em absoluto um
romântico (tal como Ega reconhece a Carlos, n’Os Maias, em 1888) e
exclama, então: qual vale mais, esta doença magnífica, ou a saúde vulgar e
inútil que se goza no clima tépido que vai desde Racine até Scribe? Refere,
nessa altura, que tivera uma cruz e versículos da Bíblia no seu quarto de
estudante. Mas que tal decoração fora retirada pois, estando Eça constipado, um
amigo defendera que o misticismo proibia o sol, o calor, os bens tépidos, a
dilatação da molécula venturosa, a flanela, os melaços e que o ateísmo era para
mim uma necessidade higiénica. Foi talvez isso mesmo que o realismo
representou para Eça: uma necessidade higiénica, um sistema organizador, uma
estrutura coerente, uma terapêutica reequilibrante e compensatória…
Em
1871, o realismo significaria então para Eça de Queirós a apologia da razão e
da luz, o fascínio pela ciência e pela sua potencialidade reveladora. E não
escapa à inevitável isotopia da visão: na sua conferência no Casino Lisbonense,
Eça associa o realismo aos termos olhos, guia, roteiro, pintar, etc., que
complementam as metáforas médicas. Assim, o escritor compartilharia com o
anatomista e o fisiologista (como no romance fisiológico ou experimental
de Zola), um olhar crítico, exterior, científico, que pesquisa e que
sistematiza, no corpo, uma rede de indícios, sinais e sintomas. Ao seu
conhecimento da intimidade corporal, frequentemente plasmado numa visão
excremencial do corpo, alia-se no escritor realista a sua actividade de
denúncia dos recalcamentos (censuras, inibições), sempre de um modo ou de outro
manifestados na superfície do corpo. Na verdade, pressupõe-se o determinismo
psicossomático, a ancoragem fatalmente física da personalidade e a analogia
entre o corpo e a mente. E pressupõe-se, igualmente, uma inevitável apassivação
do sujeito, presa das suas paixões e dos seus atavismos. A patologia e o seu
diagnóstico, extensíveis ao corpo social, é figura central nas narrativas
realistas e naturalistas.
Nas
narrativas de Eça, como em outros autores realistas/naturalistas, o corpo
revela o que está escondido, manifesta indícios, marcas, signos, o corpo é
sintomático. Por isso, o corpo doente é, simultaneamente, mais interessante e
mais decifrável: reduzido à sua disfuncionalidade, é mais expressivo, porque fala,
acumulam-se-lhe sinais clínicos, constitui o mapa gráfico da personagem. E,
assim, o retrato físico permite o diagnóstico da figura ficcional e do seu
destino narrativo. Amaro (de O Crime do Padre Amaro, tem desde criança
uma figura amarelada e magrita, é medroso, mono, muito encolhido, tem as mãos
húmidas. Mimado e feminizado pelas criadas da madrinha, mostra uma sensualidade
precoce, misturada com devoção religiosa. No seminário, com a puberdade, tem
terríveis sonhos lúbricos, emagrece, tem suores hécticos e até uma febre
nervosa» In Ana Luísa Vilela, Representações da Saúde e da Doença em Eça de
Queirós, Universidade de Évora, CEL, Maux en Mots, Universidade do Porto,
Faculdade de Letras, 2015, ISBN 978-989-864-446-4.
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