quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Tentativa de caracterização. A Revolução de 1383. António Borges Coelho. «A teórica liberdade pessoal é obstruída pelos muros dos coutos e honras dos senhores, pelo calabouço e pelo pelourinho…»

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Fernão Lopes: A Concepção da História
«(…) Dos outros dois espirituais, um é quando com os olhos da alma, por alumiamento do Espírito Santo, vimos em conhecimento de alguma cousa; o outro, quando por humanal espírito e subtileza de natural engenho, investigamos alguma cousa, a qual verdadeiramente depois sabemos, assim como foram os filósofos que souberam os naturais cursos dos planeta; e assim de outras cousas. Fernão Lopes distingue o conhecimento empírico, primeiro modo corporal, do conhecimento intelectual ou segundo modo de revelação espiritual. Mas há qualquer coisa mais nesta acção do humanal espírito que investiga e depois sabemos verdadeiramente.
O sobrenatural domina dois modos de conhecer, o segundo corporal e o primeiro espiritual e conhecer é ser passivo de revelação. As revelações chegam outrossim ao homem através dos sonhos por cinco modos: sonho, visão (quando vê por vista o que vira em sonhos), oração (quando Deus ou um Anjo aparece a um homem de boa vida) e não-sonho e fantasma. Estes dois modos postumeiros, resultam umas vezes do enchimento do estômago ou da falta de vianda, ou de amor de alguma pessoa a que bem queremos ou de gram temor ou de humor melancólico e às vezes por engano de Satanás que se transforma em Anjo da Luz.
Diria que o conhecimento histórico em Fernão Lopes assenta essencialmente no primeiro modo corporal e no segundo de revelação espiritual, isto é, no conhecimento sensível e no conhecimento intelectual. E se a verdade histórica se revela não lhe falta esforço para alcançar essa revelação. Os modos do sonho não estão inteiramente ausentes, sobretudo na Crónica de dom Pedro e na Crónica de dom Fernando, mas são modernas psicologicamente as reservas que coloca a estes modos de conhecer. Três deles, visão, não-sonho e fantasma, não têm qualquer papel. O sonho de dom Pedro e a visão do Alfageme de Santarém, por exemplo, surgem como justificativo da acção, no primeiro caso, como herança fantástica do colectivo, no segundo caso. E é significativo que nem o segundo modo de conhecer corporal nem o primeiro espiritual tenham o seu papel na elaboração das crónicas.
Na teoria, sobrenatural e natural coexistem no mesmo espaço. Como na pintura renascentista, o Anjo pode surgir naturalmente entre as árvores, deter-se no umbral da casa, tocar na trompa de ouro a Anunciação a Maria. Mas se o Anjo da Morte persegue os pestíferos do cerco de Lisboa, não entrou na Batalha de Aljubarrota e bem caro feito era aquele. Não entrou nos Atoleiros nem nos levantamentos populares. E em Valverde a procura do Anjo ia deixando ferir e matar os homens da hoste de Nuno Álvares. Mas que o Anjo está lá, está. E bem emoldurado na teoria. Talvez com as moscas da sala a borrarem aos poucos a pintura. Sesmarias/Parede, Abril/Maio de 1984.

A Revolução de 1383. Tentativa de caracterização
Portugal na segunda metade do século XIV
Aqui o movimento comunal rompeu a custo as muralhas feudais. Fora dos oásis das vilas, criados pela luta ou resultantes do equilíbrio das forças em conflito, a grande massa dos vilões está numa condição semelhante ou próxima da servidão da gleba. A teórica liberdade pessoal é obstruída pelos muros dos coutos e honras dos senhores, pelo calabouço e pelo pelourinho e pela certeza de que, abandonando a terra de que usufruem o domínio útil, os camponeses perdem tudo, incluindo o seu ganha-pão de miséria. Mas há quem viva pior: os pobres cabaneiros sem terra, mendigos e trôpegos, morrendo da esmola e dos recados, antecessores remotos do jornaleiro nortenho. Entre Douro e Minho é a base da Mitra, dos mosteiros de S. Bento, dos fidalgos de solar. A província de mais pequeno corpo sustenta embora a Sé Primaz, a mais poderosa e rica de Portugal, e deixa pousar a cabeça a três dos seis condados existentes na época, o condado de Barcelos, o condado de Viana e o de Neiva e Faria. A mais antiga nobreza de linhagem mergulha aí as suas raízes: Lopo Gomes Lira, Ayras Gomes, Ayras Gomes Silva, este último alferes-mor de dom Fernando». In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

Cortesia da Caminho/JDACT