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Fernão Lopes: A Concepção da História
«(…) Dos outros dois espirituais, um é quando com os olhos da alma, por
alumiamento do Espírito Santo, vimos em conhecimento de alguma cousa; o outro,
quando por humanal espírito e subtileza de natural engenho, investigamos alguma
cousa, a qual verdadeiramente depois sabemos, assim como foram os filósofos que
souberam os naturais cursos dos planeta; e assim de outras cousas. Fernão Lopes
distingue o conhecimento empírico, primeiro modo corporal, do conhecimento
intelectual ou segundo modo de revelação espiritual. Mas há qualquer coisa mais
nesta acção do humanal espírito que investiga e depois sabemos verdadeiramente.
O sobrenatural domina dois modos de conhecer, o segundo corporal e o
primeiro espiritual e conhecer é ser passivo de revelação. As revelações chegam
outrossim ao homem através dos sonhos por cinco modos: sonho, visão (quando vê por
vista o que vira em sonhos), oração (quando Deus ou um Anjo aparece a um homem
de boa vida) e não-sonho e fantasma. Estes dois modos postumeiros, resultam
umas vezes do enchimento do estômago ou da falta de vianda, ou de amor de
alguma pessoa a que bem queremos ou de gram temor ou de humor melancólico e às
vezes por engano de Satanás que se transforma em Anjo da Luz.
Diria que o conhecimento histórico em Fernão Lopes assenta
essencialmente no primeiro modo corporal e no segundo de revelação espiritual,
isto é, no conhecimento sensível e no conhecimento intelectual. E se a verdade
histórica se revela não lhe falta esforço para alcançar essa revelação. Os
modos do sonho não estão inteiramente ausentes, sobretudo na Crónica de dom
Pedro e na Crónica de dom Fernando, mas são modernas psicologicamente as
reservas que coloca a estes modos de conhecer. Três deles, visão, não-sonho e
fantasma, não têm qualquer papel. O sonho de dom Pedro e a visão do Alfageme de
Santarém, por exemplo, surgem como justificativo da acção, no primeiro caso,
como herança fantástica do colectivo, no segundo caso. E é significativo que
nem o segundo modo de conhecer corporal nem o primeiro espiritual tenham o seu
papel na elaboração das crónicas.
Na teoria, sobrenatural e natural coexistem no mesmo espaço. Como na
pintura renascentista, o Anjo pode surgir naturalmente entre as árvores,
deter-se no umbral da casa, tocar na trompa de ouro a Anunciação a Maria. Mas
se o Anjo da Morte persegue os pestíferos do cerco de Lisboa, não entrou na
Batalha de Aljubarrota e bem caro feito era aquele. Não entrou nos Atoleiros
nem nos levantamentos populares. E em Valverde a procura do Anjo ia deixando
ferir e matar os homens da hoste de Nuno Álvares. Mas que o Anjo está lá, está.
E bem emoldurado na teoria. Talvez com as moscas da sala a borrarem aos poucos
a pintura. Sesmarias/Parede, Abril/Maio de 1984.
A Revolução de 1383. Tentativa de caracterização
Portugal na segunda metade do século XIV
Aqui o movimento comunal rompeu a custo as muralhas feudais. Fora dos
oásis das vilas, criados pela luta ou resultantes do equilíbrio das forças em
conflito, a grande massa dos vilões está numa condição semelhante ou próxima da
servidão da gleba. A teórica liberdade pessoal é obstruída pelos muros dos
coutos e honras dos senhores, pelo calabouço e pelo pelourinho e pela certeza
de que, abandonando a terra de que usufruem o domínio útil, os camponeses
perdem tudo, incluindo o seu ganha-pão de miséria. Mas há quem viva pior: os
pobres cabaneiros sem terra, mendigos e trôpegos, morrendo da esmola e dos
recados, antecessores remotos do jornaleiro nortenho. Entre Douro e Minho é a
base da Mitra, dos mosteiros de S. Bento, dos fidalgos de solar. A província de
mais pequeno corpo sustenta embora a Sé Primaz, a mais poderosa e rica de
Portugal, e deixa pousar a cabeça a três dos seis condados existentes na época,
o condado de Barcelos, o condado de Viana e o de Neiva e Faria. A mais antiga
nobreza de linhagem mergulha aí as suas raízes: Lopo Gomes Lira, Ayras Gomes,
Ayras Gomes Silva, este último alferes-mor de dom Fernando». In
António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção
Universitária, 1984.
Cortesia da
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