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A
matança de Lisboa que ocorreu lá em Lisboa…
«(…)
Esse ódio iria degenerar rapidamente em manifestações violentas. A primeira dá-se
a 24 de Maio de 1504 quando um grupo de cristãos-novos é insultado na rua Nova,
desencadeando uma rixa, durante a qual quarenta jovens foram presos e
condenados ao degredo em S. Tomé. Apesar da intervenção da rainha revogando a
deportação, este incidente é já um sinal da tragédia que se abaterá dois anos
mais tarde sobre os cristãos-novos. Esta tragédia tem como pano de fundo uma
situação em Lisboa de epidemia de peste, de seca e de fome. Os cristãos-novos eram
o bode expiatório ideal da situação de sofrimento real da população, para mais
sentindo-se esta abandonada pela corte de Manuel I que se tinha refugiado em Abrantes.
Tudo
começou com uma denúncia às autoridades da celebração de uma ceia pascal
judaica com a presença de marranos sentados à mesa posta com pão ázimo e ervas amargas.
Segundo algumas versões, após irrupção da polícia no local do crime (?!)
foram presos dezasseis cristãos-novos, os quais depois da intervenção real e à
custa de substanciais subornos terão sido libertados, provocando a ira popular
que reclamava um castigo pelo fogo. Mas a gota que fez transbordar o vaso, foi
o que se passou na igreja do convento de S. Domingos, a 19 de Abril de 1506. Nesse
dia, pelas três horas da tarde, estava reunida uma multidão de fiéis em oração
pelo fim da peste e pela clemência divina quando da cruz que pendia sobre o
altar emanaram uns raios de luz provocando a histeria colectiva: milagre,
milagre!, gritava a multidão em êxtase. Entre os presentes estava um
cristão-novo que terá dito Como pode um pau seco fazer milagres?, ou
segundo a versão de Ibn Verga Mais valia um milagre da água de que tanto
precisamos do que um milagre pelo fogo. O certo é que, num clima de
fanatismo e excitação colectiva, o imprudente cristão-novo foi imediatamente
levado para fora, linchado e o seu cadáver decepado. O irmão que acorreu para prontamente
indagar a razão por que o matavam foi também assassinado e ambos os corpos
queimados no largo fronteiriço.
Em
seguida, instigada por dominicanos gritando Heresia, Heresia! Destruam esse povo
abominável!, a populaça correu pelas ruas da cidade massacrando todos os
cristãos-novos que encontrava e arrastando em seguida os corpos até ao largo de
S. Domingos onde eram queimados, vivos ou mortos. Um alemão que deixou um
testemunho detalhado deste massacre conta que três monges percorriam a cidade
aos gritos de Misericórdia e morte aos Judeus!, seguidos por uma turba
enfurecida de homens e mulheres, à qual se juntaram centenas de marinheiros estrangeiros,
que estrangulavam e queimavam os judeus, incluindo mulheres e crianças, e
saqueavam as suas casas. Cerca de duas a três mil pessoas foram assim
assassinadas em três dias com requintes de malvadez, mulheres grávidas atiradas
pelas janelas e aguardadas em baixo por lanças empunhadas, bebés estilhaçados
contra os muros, violações, desmembramentos, autos-de-fé... A matança parou por
exaustão, mas também porque e já havia pouco para matar, os sobreviventes
tinham fugido, alguns com a ajuda de cristãos-velhos.
Manuel
I reagiu severamente punindo o que não soubera prevenir. Mandou prender e
encarcerar os principais cabecilhas do massacre e retirou a Lisboa, por dois
anos, os seus privilégios e liberdades. Os dois frades que instigaram o
movimento acabaram na fogueira e muitos outros foram enforcados ou privados dos
seus bens. Mas a matança de Lisboa teve consequências importantes. No
seguimento do profundo traumatismo sofrido e graças às pressões dos
cristãos-novos, Manuel I revogou a proibição de saída destes de Portugal,
decretada em 1499. No dia 1 de Março de 1507 publicou um decreto autorizando os
que assim o desejassem a partir para países cristãos com as suas famílias e
bens, e a regressar, se e quando o quisessem, sem perda de direitos e regalias,
o que se aplicava mesmo aos que tinham partido ilegalmente. O monarca Manuel I tentava
assim ainda manter a sua disponibilidade à integração dos cristãos-novos,
esperando ao mesmo tempo desembaraçar-se dos elementos judaizantes mais
activos. Na verdade, toda a sua política se soldou pelo fracasso. Isso mesmo
terá ele concluído ao decidir solicitar ao papa, em 1515, a autorização para
instalar a Inquisição (maldita) em Portugal. Não
levou o projecto avante, como é sabido. Esta só será instalada em 1536 por João
III. Mas o facto é revelador da política dúbia e oportunista do rei Afortunado».
In
Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia portuguesa do século XVI que desafiou o
seu próprio destino, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.
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