quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Grácia Nasi. Esther Mucznik. «Manuel I reagiu severamente punindo o que não soubera prevenir. Mandou prender e encarcerar os principais cabecilhas do massacre e retirou a Lisboa, por dois anos, os seus privilégios e liberdades»

jdact

A matança de Lisboa que ocorreu lá em Lisboa…
«(…) Esse ódio iria degenerar rapidamente em manifestações violentas. A primeira dá-se a 24 de Maio de 1504 quando um grupo de cristãos-novos é insultado na rua Nova, desencadeando uma rixa, durante a qual quarenta jovens foram presos e condenados ao degredo em S. Tomé. Apesar da intervenção da rainha revogando a deportação, este incidente é já um sinal da tragédia que se abaterá dois anos mais tarde sobre os cristãos-novos. Esta tragédia tem como pano de fundo uma situação em Lisboa de epidemia de peste, de seca e de fome. Os cristãos-novos eram o bode expiatório ideal da situação de sofrimento real da população, para mais sentindo-se esta abandonada pela corte de Manuel I que se tinha refugiado em Abrantes.
Tudo começou com uma denúncia às autoridades da celebração de uma ceia pascal judaica com a presença de marranos sentados à mesa posta com pão ázimo e ervas amargas. Segundo algumas versões, após irrupção da polícia no local do crime (?!) foram presos dezasseis cristãos-novos, os quais depois da intervenção real e à custa de substanciais subornos terão sido libertados, provocando a ira popular que reclamava um castigo pelo fogo. Mas a gota que fez transbordar o vaso, foi o que se passou na igreja do convento de S. Domingos, a 19 de Abril de 1506. Nesse dia, pelas três horas da tarde, estava reunida uma multidão de fiéis em oração pelo fim da peste e pela clemência divina quando da cruz que pendia sobre o altar emanaram uns raios de luz provocando a histeria colectiva: milagre, milagre!, gritava a multidão em êxtase. Entre os presentes estava um cristão-novo que terá dito Como pode um pau seco fazer milagres?, ou segundo a versão de Ibn Verga Mais valia um milagre da água de que tanto precisamos do que um milagre pelo fogo. O certo é que, num clima de fanatismo e excitação colectiva, o imprudente cristão-novo foi imediatamente levado para fora, linchado e o seu cadáver decepado. O irmão que acorreu para prontamente indagar a razão por que o matavam foi também assassinado e ambos os corpos queimados no largo fronteiriço.
Em seguida, instigada por dominicanos gritando Heresia, Heresia! Destruam esse povo abominável!, a populaça correu pelas ruas da cidade massacrando todos os cristãos-novos que encontrava e arrastando em seguida os corpos até ao largo de S. Domingos onde eram queimados, vivos ou mortos. Um alemão que deixou um testemunho detalhado deste massacre conta que três monges percorriam a cidade aos gritos de Misericórdia e morte aos Judeus!, seguidos por uma turba enfurecida de homens e mulheres, à qual se juntaram centenas de marinheiros estrangeiros, que estrangulavam e queimavam os judeus, incluindo mulheres e crianças, e saqueavam as suas casas. Cerca de duas a três mil pessoas foram assim assassinadas em três dias com requintes de malvadez, mulheres grávidas atiradas pelas janelas e aguardadas em baixo por lanças empunhadas, bebés estilhaçados contra os muros, violações, desmembramentos, autos-de-fé... A matança parou por exaustão, mas também porque e já havia pouco para matar, os sobreviventes tinham fugido, alguns com a ajuda de cristãos-velhos.
Manuel I reagiu severamente punindo o que não soubera prevenir. Mandou prender e encarcerar os principais cabecilhas do massacre e retirou a Lisboa, por dois anos, os seus privilégios e liberdades. Os dois frades que instigaram o movimento acabaram na fogueira e muitos outros foram enforcados ou privados dos seus bens. Mas a matança de Lisboa teve consequências importantes. No seguimento do profundo traumatismo sofrido e graças às pressões dos cristãos-novos, Manuel I revogou a proibição de saída destes de Portugal, decretada em 1499. No dia 1 de Março de 1507 publicou um decreto autorizando os que assim o desejassem a partir para países cristãos com as suas famílias e bens, e a regressar, se e quando o quisessem, sem perda de direitos e regalias, o que se aplicava mesmo aos que tinham partido ilegalmente. O monarca Manuel I tentava assim ainda manter a sua disponibilidade à integração dos cristãos-novos, esperando ao mesmo tempo desembaraçar-se dos elementos judaizantes mais activos. Na verdade, toda a sua política se soldou pelo fracasso. Isso mesmo terá ele concluído ao decidir solicitar ao papa, em 1515, a autorização para instalar a Inquisição (maldita) em Portugal. Não levou o projecto avante, como é sabido. Esta só será instalada em 1536 por João III. Mas o facto é revelador da política dúbia e oportunista do rei Afortunado». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.

Cortesia de ELivros/JDACT