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«(…) Lisboa de branco e azul, beijada pelo areal de ouro que a contornava
e onde ia adormecer. no vaivém lento do movimento de um berço de criança, o rio
que se estende, a Ocidente até ao mar. Lisboa, nave de altas velas que rasgam o
céu, Lisboa-viagem, Lisboa-destino, Lisboa-ninho de outras vidas que, com o tempo
irá encontrar. Rodeada de hortos e vinhedos de Valverde, vestida pelos olivedos
do Andaluz, cercada pelas almoinhas de Alvalade, Lisboa das gordas vinhas de Almafala
e dos pomares úberes que estendem a folhagem até às zonas mouriscas do Restelo
e ao reguengo refrescante de Algés. Vi-a como ave, também, no alcandorado dos Paços,
na colina da Alcáçova, como águia mirando o Sol rubro do Poente a afundar-se no
mar de estanho, prata e sangue, de onde vêm os mercadores, homens de negócio, genoveses,
florentinos, ricos judeus das repúblicas italianas. Mirava a colorida exposição
dos tecidos nos armazéns, que percorri com o séquito de meus irmãos, aias e camareiras,
os briais flamengos, as granadas, os cendrais de cor rosa, verdes e lilazes, os
doces arminhos, os magníficos brocados de Florença, os ricos e finos panos,
quase transparentes ao Sol, de Holanda, as mercadorias da Veneza feérica e longínqua,
Veneza a magnífica. Os seus navegadores vão aos confins do mundo, ao Mar Negro e
a Constantinopla, dessas zonas de onde também veio a negra peste do nosso infortúnio,
Lisboa, meu bom amigo, onde os judeus mercadejam tudo, vindos também da Itália,
da França, das terras banhadas pelo Mar Interior, e que nas barcas vendem desde
a estamenha pobre para os mais desfavorecidos e para confeccionar os hábitos dos
cenóbios até às valencianas, as almáfegas, os bragais, as solias, os saiais, as
crespinas ou as capeleiras que enobrecem e ataviam as cabeças, tudo se vende, desde
as roupas aos metais, as pedras preciosas, o ouro, a prata, os esmaltes. Tenho um
enorme rubi que minha tia me ofereceu e o comprou a um mercador florentino em Lisboa.
Ah, meu bom amigo, Lisboa ainda nas velhas ruínas, não as da guerra, dos fogos,
da violência dos homens, mas as antigas, as que o passar inexorável dos anos esculpiu
e acariciou. Tão antigas, lá no alto, como aquelas que pertenceram a um velho edifício
do tempo dos pagãos, com as suas colunas de capitéis trabalhados, mármores róseos
e brancos e as bancadas de assentamento de placas polidas, onde os espectadores
se sentavam a ver representar as tragédias de que me falava mestre Judah, ou Judas
como sempre lhe chamei, os autos pagãos de tempos imemorais.
Eu, frei Juan, que posso dizer que a minha vida não foi mais que um acumular
de ruínas, amo-as de uma forma especial, porque elas apresentam as cicatrizes do
tempo como o nosso rosto. Têm face também e falam. As velhas pedras relatam a vida
e a memória. Estão sempre vivas, mesmo quando as olhamos distraidamente ou nos esquecemos
delas. São também, em muitos casos, com o secreto calor da sua vida antiga, uma
companhia e um lenitivo para as nossas dores e a nossa memória, quando vivemos
no esquecimento, anónimos e distantes. Frei Juan, aprendi isso, recentemente,
aqui.
A minha primeira estada em Lisboa foi breve. Regressei a Pombeiro e soube
então que me encontrava grávida... Quando me casara era uma garota de longos cabelos
que arrecadei em tranças atrás ou dos lados da cabeça, enroladas a preceito, ou
em bandós, logo que passei de donzela a mulher casada. Nunca, apesar de usar
coifa, rapei o cabelo acima da testa, como vi muitas mulheres fazer para se
sacrificarem à moda que vinha, então, de França. Mas depilei as sobrancelhas
para que se avolumasse a linha dos meus belos olhos. Desculpai, frei Juan, este
resto de vaidade tão feminil mas eu fui bela, murito bela e meu marido João Lourenço
nem sequer teve consciência disso a não ser quando, enfim, me livrei da sua desagradável
presença. Eu era jovem, inexperiente, ele mais velho, habituado como todos os homens
ao conforto transitório das comborças de ocasião». In Seomara da Veiga Ferreira,
Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999,
ISBN 942-23-2347-4.
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