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Um
amor em Sevilha
«(…)
Quando se encontraram para o almoço, como de costume, ficou com a impressão de
que ela pressentia qualquer coisa, mas não teve coragem de falar. Nem no dia
seguinte, um domingo, pela primeira vez depois de muito tempo voltara a haver
tourada e não quisera estragar-lhe a alegria. Amanhã abro-me com ela. Mas só o
conseguiu na quinta-feira, depois de alguns suspiros, aflito por não saber como
começar. Ela ouviu-o calmamente, sem interromper, sem a cena ou os gritos para
que se tinha preparado. Séria, os olhos na mesa, garantiu-lhe que compreendia,
sabia bem qual era o seu destino. A falar verdade não tinha acreditado que
pudessem chegar a viver juntos. Pois ia agora ele, um senhor, amasiar-se com
uma mulher da vida? Alguma vez se tinha visto isso? Nos livros, sim, nas fitas
de cinema. Foi ele que lhe segurou a mão, sentindo-se culpado e reles, tropeçando
nas palavras para confessar o que no íntimo mais o preocupava: com certeza a
mulher tinha tratado logo do divórcio, era bem possível que ao receber a carta,
vendo-se abandonada, tivesse arranjado um amante. Afligia-o também não saber o
que tinha acontecido ao menino. Não é a primeira vez, sabes? - disse ela,
procurando qualquer coisa na bolsa. Ele abriu o isqueiro para lhe dar lume, supondo
que procurasse os cigarros, e só então, com um sentimento indefinível onde se
misturavam a vergonha, a mesquinhez, a inquietude e o remorso, reconheceu que
ela lhe estendia o envelope da carta que nunca tinha mandado. Mas...! Ela
fechou a bolsa, levantou-se, tocou-lhe no ombro a impedir o movimento que ele
fazia para se levantar também, e saiu para a rua.
Lord
William
Lord
William B. chegou a Lisboa na Primavera de 1948, vindo de Itália num dos
primeiros paquetes que depois da guerra reiniciaram a ligação entre Génova e o
Rio de Janeiro. A sua bagagem causou pasmo, foi motivo de conversa para os
estivadores que a tiraram do porão e os mirones que a viram passar. É certo que
lord William, como toda a gente, viajava com malas. Apenas muitas mais. Mas às malas
seguiram-se caixas, caixotes, grades e arcas, baús, embalagens do tamanho de um
quarto, tudo isso formando no cais um montão imponente. Encheram-se três
vagões. Com o que ainda sobrava de miudezas carregou-se o camião de um homem
que julgou que teria de levá-las ao Estoril, dois passos, e se enfureceu ao
descobrir que a viagem era para os confins do Douro, naquele tempo dois dias
para a ida, se as estradas estivessem boas, e outros tantos de volta. O
desembarque e o despacho tinham sido rápidos e, pelo menos na aparência, sem encrencas
na alfândega, a ponto que no entreposto se imaginou, e depois se afirmou, que o
lord era primo direito do rei da Inglaterra». In José Rente de Carvalho, Os
lindos braços da Júlia da farmácia, 2011, Quetzal Editores, Lisboa, 2014, ISBN
978-972-564-967-1.