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«Delimitar
um grande período historiográfico no tempo, separando-o de um que se estende
atrás dele e de outro que começa depois, é uma operação que traz indeléveis
marcas ideológicas e culturais que nos falam da sociedade na qual está
mergulhado o próprio historiador, dos seus diálogos intertextuais, de visões de
mundo, que de resto estende-se para muito além do historiador que está
estabelecendo seus recortes para a compreensão da história. Os próprios
desenvolvimentos da historiografia, os novos campos históricos e domínios que
surgem, a emergência de novas relações interdisciplinares, os enfoques a
abordagens que se sucedem como novidades ou como reapropriação de antigas
metodologias, trazem obviamente uma contribuição importante para que a cada vez
se veja o problema da passagem de um a outro período histórico sob novos
prismas. Examinaremos sob esta perspectiva a questão da Antiguidade e de sua
oscilação de fronteiras temporais em relação à Idade Média, quando se tem em
vista uma periodização da história no Ocidente. Será oportuno partir da
constatação de que o acontecimento fundamental que rege muito habitualmente
esta fronteira, ainda que se discutindo qual o momento mais emblemático a ser
considerado, é recorrentemente o fim do Império Romano, ou o fim da civilização
greco-romana, para considerar o problema em uma perspectiva mais ampla. Este
acontecimento, que de resto não teria maior importância para as diversas
histórias possíveis de serem construídas em relação às espacialidades não
europeias, busca colocar precisamente em relevo a importância do Ocidente na
história do mundo. De igual maneira, aqui temos um acontecimento-demarcador que
também favorece uma historiografia cristã específica, pois o mundo antigo vai
cedendo lugar ao mundo medieval à medida que a Igreja Cristã vai-se afirmando
como força política importante, como aspecto definidor de uma nova civilização
e, sobretudo, de uma nova cultura. É interessante observar, aliás, que a
Antiguidade e a Idade Média são parceiras no projecto de fornecerem ao Ocidente
Moderno e ao Contemporâneo dois de seus principais traços definidores de
identidade: os valores greco-romanos que futuramente se tornariam uma
base para a cultura burguesa, e o cristianismo, que se tornaria a
religião predominante no Ocidente. Identitariamente, o Ocidente poderia ser
apresentado simultaneamente como filho de Aristóteles e filho de Cristo, para
falar em termos metafóricos. Por outro lado, se o fim do Império Romano, tomado
como signo do próprio fim do mundo antigo, é habitualmente proposto como evento
demarcatório entre os dois períodos, é relevante destacar que entre o
desaparecimento do mundo antigo e a emergência da Idade Média existe uma grande
zona temporal repleta de ambiguidades, por assim dizer, onde se confrontam intensamente
as rupturas e permanências entre estas duas fases da história europeia. Por
isso, esse grande período de alguns séculos, que alguns situam entre os séculos
IV e VIII, ou mesmo entre os séculos III e VIII, tem sido perspectivado de
maneira diferente pelos vários grupos de historiadores, gerando inclusive
denominações distintas. Alguns dos historiadores da Antiguidade chamam-no de
Antiguidade Tardia. Já alguns dos medievalistas preferem-no chamar de Alta
Idade Média ou de Primeira Idade Média. Vale dizer que muitos dos medievalistas
costumam ver neste período um começo, o início de uma nova era, e
incorporam-no como seu território historiográfico. Reconhecendo as permanências
trazidas da Antiguidade, que só lentamente se desfazem, centram contudo o
principal de suas atenções sobre as rupturas, sobre o que este período traria
de singularmente novo para a história. A posição no campo dos antiquistas é
bastante dividida. Uma das dicotomias mais tradicionais, de certo modo já
superada pela historiografia recente, é aquela que se estabelece no seio do
grupo de historiadores que comparam a civilização greco-romana a um organismo
vivo. De um lado teremos aqueles que investem no imaginário de que a
civilização greco-romana teria desaparecido abruptamente; de outro, teremos
aqueles que investem na ideia de que a civilização greco-romana foi definhando
ou decaindo mais ou menos gradualmente. À parte isto, já veremos, seria
possível visualizar o Império Romano não como organismo vivo, e sim como algo
que a partir de certo momento vai se transformando nas novas realidades
civilizacionais que se afirmariam no período medieval, de um lado o Império
Bizantino, de outro a civilização ocidental cristã partilhada pelos novos
reinos europeus. Por fim, a visualização do Império Romano não como organismo,
mas como um outro tipo de sistema complexo, permitiria examinar o seu rápido ou
gradual desaparecimento, conforme a perspectiva do analista, como uma desagregação
das forças que o sustentavam e que lhe davam a sua especificidade». In
José D’Assunção Barros, Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média, Editora
Vozes, 2012, ISBN 978-853-264-454-1.
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