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«(…) Continuava festejeiro, tocava
guitarra, bebia o seu copo, mas quando ao fim dos quatro anos de tropa a grande
maioria dos camaradas foi de volta para as aldeias, ele, seguro do que tinha
aprendido, fez concurso para a Guarda Fiscal. No exame ganhou o primeiro lugar,
outra razão de orgulho. Mas doeu-lhe que em vez de o deixarem ficar na cidade
que tanto lhe agradava, o mandassem desterrado ganhar prática em Esmoriz, uma
aldeia na costa. Duas ruas de casebres. Barcos frágeis encalhados na areia.
Redes estendidas sobre varais à espera de remendo. Pescadores tão pobres que no
Inverno, quando o mar embravecia, ficavam sem sustento e iam a pedir esmola por
longe. Vinte e cinco anos, chefe de posto. O prédio
ainda lá está. Embora pequeno, era de cantaria, uma imponência entre as choupanas
de madeira. Bandeira desfraldada, o distintivo e as letras douradas sobre a porta.
Sentado a uma escrivaninha de pinho, ou fazendo as suas rondas, o jovem Zé Maria
comandava aí quatro homens que patrulhavam a beira-mar e de madrugada apareciam
na lota a recolher o imposto sobre o pescado. O comandante, que própria e alheia
conhecera a miséria de perto dizia-lhes que de vez em quando fechassem os olhos,
não fossem severos no peso do peixe. Recomendação supérflua. Esse era o costume,
e quando a pesca rendia os pescadores não esqueciam o favor, pelo que nunca nas
casas da autoridade faltava a sardinha ou a faneca, os camarões do mar próximo,
o polvo que vivia agarrado aos penedos, as raias e os congros que eles iam buscar
às águas longínquas donde se não via a costa. Em 1886, casado havia ano e pouco com Maria
dos Santos, uma rapariga de Estevais, assistiu com ela no Porto aos grandes
festejos da inauguração da ponte de D. Luís. Como era a vida nesse tempo? No comboio
que nos levava a ambos de viagem para ir a aldeia, minha avó olhou-me surpreendida.
Precoce, pouco mais fazendo que ler, aos oito ou nove anos as minhas frases ganhavam
por vezes uma seriedade adulta. A vida era boa, respondeu ela, com uma expressão
melancólica que recordo bem. Às vezes pesada, mas ia-se aguentando. Palavras de
conforto para não magoar a inocência da criança que ela me julgava e eu no
corpo ainda era. Mas só no corpo, porque a cabeça, essa, pelas razões
misteriosas que as circunstâncias do viver engendram, funcionava acelerada e já
pouco tinha de infantil. O mundo entrava-me em catadupas para o cérebro
e cada cena, cada conversa, por vezes uma simples observação, bastava para que
numa torrente de sentimentos se me revelassem episódios inteiros das existências
que me rodeavam. A avó tinha mentido por caridade. Acabada de casar, longe do conchego
da família e da aldeia, para a rapariguinha que nunca tinha conhecido mais que as
ladeiras em redor, e alguma ida a Mogadouro para a feira de ano, a vida não seria
leve. Criada na serenidade da montanha, nunca ela se habituou ao marulhar das ondas,
à ventania constante, à areia onde se caminhava a cambalear. Mais tarde, contando
o passado, diria muitas vezes que a saudade e a tristeza é que lhe tinham feito
perder o primeiro filho, uma menina que só viveu horas. Mas, maior sombra que o afastamento da casa
paterna, lhe causavam por certo as aventuras do homem que ela, naquele tempo de
submissão, tinha de aceitar calada, fingindo não ver. Porque, infelizmente, de namorador
Zé Maria passara a galaroz. Figura desempenada, ar marcial, a autoridade de
comandante e o poder que lhe dava a lei sobre aquela gente pobre, as mulheres corriam
para ele como moscas para o mel. Não ficaram detalhes nem provas, só murmúrios,
retalhos de conversas ouvidas por acaso e que findavam súbitas ao eu chegar, mas
de vez em quando uma ou outra fatalmente emprenhava e pelas aldeias da costa há-de
haver mais de um ignorado tio meu. Contudo, as aventuras, discretas bastante para
nunca ser apanhado em flagrante, devem ter sido para ele apenas um passatempo. Paixão
funda só a tinha pelo estudo e pela leitura. Jornais, livros, os panfletos que os
partidos distribuíam aos milhares, devorava-os ele como se, juntamente com a
sua, tivesse de saciar também a fome de saber dos antepassados que o destino fizera
nascer e viver no negrume da ignorância. Zé Maria lia, relia, decorava». In
José Rentes de Carvalho, Ernestina, 2001, Quetzal Editores, Lisboa, 2009, 2014,
ISBN 978-989-722-171-2.
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