quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Tempo de Lacraus. António Borges Coelho. «No comboio do Corgo, os adultos chegam com a mão ao tejadilho. O pó do carvão invade tudo e as faúlhas acendem aqui e ali pequenas fogueiras no mato»

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«(…) Abraçava-o para lhe dar ânimo mas a mensagem não passava. Os olhos de André fixavam-se e repeliam as cavadas regueifas do pescoço donde saía a voz que o animava. As más leituras é que te perderam. Más leituras? Na busca que lhe fizeram aos papéis, apreenderam uma lista de livros que não passava de lista de intenções. Diziam mal do Eça, do Balzac, do Torga, do Aquilino? Queria saber porquê. E mais alta que a voz do frade, a voz da mãe martelava-lhe a cabeça; já sabes. Se te mandarem embora, cá fica a enxada atrás da porta. Não podia chegar à vila embrulhado na roupa preta. Entrou nos lavatórios da estação e trocou o fato por uma roupa mais clara. Quantas vezes ouvira a ameaça: tira as mãos dos bolsos ou vais vestir o fato preto. Agora tudo acabava. Sobrava o chapéu redondo. Num gesto libertador, lançou-o pela janela do comboio e ficou a vê-lo rolar pela ravina em direcção ao Douro. Olha o padre sem coroa! O rio traz-me de novo a infância, disse André. É o nosso rio paterno. As águas são cor de azeite. Verde-azeite, disse Basílio. Nem falta o barco rabelo. As pinturas de Pala Pinta. O Cachão da Valeira onde naufragou o barão de Forrester, disse Basílio. E a água da vida; mas quantos nela se afogaram?!... Vida, vida. Deixa os mortos. O carro subia em direcção ao Pinhão. As raparigas já vestem como na cidade, disse André. É a televisão. Os regatos continuam a correr à beira das casas e da estrada. Continuas um lírico.
O que se passa com estes dois? Não foi boa ideia juntá-los. Não sei porquê, confio mais nele do que nela. Há menos crianças de barriga grande e de cu ao léu, disse em voz alta. O carro rodava agora no planalto. Os viajantes seguiam entregues aos seus pensamentos. No comboio do Corgo, os adultos chegam com a mão ao tejadilho. O pó do carvão invade tudo e as faúlhas acendem aqui e ali pequenas fogueiras no mato. Em Carrazeda, o comboio assoma à aldeia, incensando-a de vapor, cerca-a numa grande roda e volta de novo, pouca-terra, pouca-terra. Há tempo para tudo: para olhar o comboio a equilibrar-se no dorso dos precipícios ou para levantar os olhos, baixá-los e olhar de novo a desconhecida companheira de viagem e da cavalgada dos pensamentos e dos sonhos. A estrada corria cavada entre cabeços. De repente, alguém gritou: olha aquela mulher! Pára!, ordenou Joana. O carro estacou na berma. Joana saltou, máquina fotográfica em riste, enquanto André corria murmurando palavras ininteligíveis. Vais a rezar padre-nossos?!
Aquela mulher era a montanha; montanha matriarca. Guardiã da casa de granito, ela é o esteio. Para a mulher de negro se voltam os olhos, as preces, as cartas. Ela convoca os ausentes, acende-lhes o fogo na pedra de granito sob o telhado de telha-vã; corta-lhes a linguiça, o salpicão; atesta de vinho a caneca de barro comprada na feira de S. Pedro; conserva-lhes os cachos de uvas passas na sala a emoldurar o retrato. Joana começou a disparar a máquina. No carro, Basílio dominava a cena e abanava a cabeça com um sorriso. A montanhesa levou as mãos ao rosto marcado como se esconjurasse um fantasma ou o próprio demónio. Credo. Que quer de mim, menina? É só um retrato. Ora, disse a mulher sem idade. Se fosse uma rapariga nova. Quem se interessa por uma cara de velha? Atirou uma pedra à cabra que saltara a esgalgar as folhas de couve. O lenço preto, apertado no queixo, deixava a descoberto um palmo de rosto, iluminado pelo brilho dos olhos escuros. O xaile fixava-se-lhe nos ombros e caía sobre o vestido túnica. As socas rematavam o corpo. A máquina fotográfica ora a levantava contra o céu ora lhe prendia o rosto, as mãos sobre o regaço ou a tapar a boca. Joana baixava-se, dobrava o joelho nu em terra, rodeava a mulher por todos os lados e disparava. Não sei o que tinha de especial aquela velha! Não passa de uma pobre mulher. A princípio, pareceu-me a Beiranda (?), aquela que no Inverno rilhava pedras para matar a fome, disse Basílio». In António Borges Coelho, Tempo de Lacraus, Editorial Caminho, Lisboa, 1999, ISBN 972-211-271-6.

Cortesia de Caminho/JDACT