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As Casas
«(…) O que é cada uma destas casas?
Desde logo, um capítulo, parte orgânica de um texto narrativo. A sua designação
titular, o facto de serem centrados numa personagem, o rigor da sua
distribuição, posição e sequência (o que inclui as alterações na última
sequência) fazem deles capítulos especiais, com uma autonomia relativa maior do
que tradicionalmente, uma acentuada rendibilidade combinatória, uma múltipla produtividade
semântica. Repare-se tão-só que a simples organização das casas-capítulos em
grupos de três unidades fortemente distintas e as regras da sua distribuição
sequencial complicam, transformando-o, o modelo de uma aventura linear.
Acabaremos por ter três aventuras complexas e os gestos e movimentos de uma outra,
que através daquelas se tece. Numa casa destas, pode viajar-se de automóvel e
ir jantar fora, ou ir à praça, ou deambular pela cidade, ficar em casa, morrer,
ou mudar de casa. Numa casa, podem vir ecoar as histórias de outras casas, os projectos
de uma outra casa. Cada uma destas casas é o espaço dos gestos de um corpo
individual e social, de um corpo feminino: é um momento da relação de uma
personagem com o(s) seu(s), nome (s), a modulação da trajectória do seu corpo
que fala sobre a porção de terra que lhe couber, fulguração de um destino, de
um processo de individuação (ou, no caso de Mary, do processo da frustracão dessa
individuação). Nesse sentido, trata-se também das casas astrológicas de que fala
Maria Alzira Seixo. Mas ainda, deslocadamente. das moradas de Teresa de Jesús,
já não como aposentos do castelo todo de diamante e mui claro cristal, que é a
nossa alma, mas lugares de uma outra experiência fundamental. Assim, a última frase
da última casa de Elisa é a versão, em contexto e modo irónico, de uma frase do
final do primeiro capítulo das Moradas Primeiras, do livro de Teresa de Jesús: agarra-te
bem que inda agora vamos a entrar reescreve: Harto hace en haber entrado,
e situa esse momento final de Elisa, como apenas a fase de abertura de um
processo (um atrium).
Assim, estas caixas são ainda
lugares habitados ou, mais rigorosamente, em processo de habitação, desabitação
ou mudança de vida, geografia humana. Lugares de um espaço individual e
familiar, social, histórico e nacional: casas pardas. Espaço multiplamente clivado,
diverso, atravessado, entretanto pelo desejo e a necessidade dos seus
habitantes se decifrarem como gente, nação ou tribo. Cada lugar destes é,
depois, um lugar compósito, feito das suas divisões e dos seus valores sociais
e culturais, dos seus valores simbólicos. É ver-se como nas várias casas se
jogam as suas partes: as míticas cozinhas, as diversas casas de banho, os
quartos de criança, do amor, da solidão, do espectáculo da morte, e do
suicídio, as salas de trabalho ou dos jantares rituais, o pátio do monte, ou o
pátio da comunidade de bairro, etc., etc..
As casas não são transparentes: em
cada uma há sempre a relação com outra ou outras, nomeadamente casas no passado
e na província, porque estas, as presentes, são em (de) Lisboa. E nessas relações,
num sistema de ecos e imagens, comparecem as famílias e os seus dramas, os fantasmas
do desejo, as invocações da preferência, os lutos das ofensas e desamores, a
memória das provas. Radicadas num solo, ancoradas na cidade, as casas não são
fixas nem imutáveis, são lugares de movimento, de trânsito, de pequenas e maiores
mudanças, de transformações. Uma casa é como se verá um lugar que se pode ir
mudando, transformando por dentro (como a de Elisa); pode ser uma casa que se
abandona (a de Marieta, por Elvira, ou a de Mary, por Elisa), como um lugar
para onde se pode ir, onde se pode chegar (como a nova casa de Elvira: mudar de
casa, mudar de vida). Pode ser o casulo poroso ao mundo, onde o bicho desenovelando-se,
tenso e atento, se metamorfoseia (a de Elisa); mas também pode ser essa cápsula
onde (de que) alguém morre, se dá morte, essa cápsula espacial por onde alguém
regressa, morto, à indiferenciação (a de Mary.), único gesto ainda possível de
impugnar a desolada habitação imposta». In Maria Velho da Costa, Casas Pardas, 1986,
Assírio e Alvim, Porto, 2013, 978-972-371-689-4.
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