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«(…) A eventualidade era
real porque no reinado anterior muitos juízes e mordomos régios tinham sido
mortos, mutilados ou espancados por tentarem cobrar os direitos do soberano.
Por isso permaneceu com a sua corte em Guimarães, em Braga e no Porto desde 30
de Março até ao fim de Julho. Neste mês, verificando que até ali tudo tinha
decorrido pacificamente, dirigiu-se a Coimbra e Leiria, onde passou o resto do
Verão e o Outono. Luís Krus, num estudo fundamental, mostrou como as
inquirições de 1258 representam uma autêntica revolução em termos políticos,
sociais e mentais. Ao confiar a missão a letrados, Afonso III impõe ao meio
rural e senhorial um sistema de valores que tem na lei, na escrita e na
representação política os seus mais fortes apoios ideológicos. É nestes apoios que
se baseia a administração régia para se impor como instância decisória acima
das comunidades locais regidas por costumes transmitidos oralmente e sujeitos à
arbitrariedade dos senhores nobres e eclesiásticos. O rei deixa de aparecer
como um longínquo representante de Deus encarregado de assegurar a paz e a
justiça para se apresentar como aquele que dita a lei e a faz cumprir
independentemente de poderes, costumes e privilégios locais. O novo sistema de
valores não se difunde por meio de qualquer propaganda doutrinal, mas por meio
da acção prática e do exemplo dado por quem demonstra competência para o fazer.
É uma prática que (serve) de exemplo, em primeiro lugar, aos funcionários
régios locais: deixam de estar à mercê das humilhações perpetradas pelos
senhores locais para poderem reivindicar uma autoridade da mesma natureza e
emanada da mesma fonte que os próprios inquiridores, aquela que eles exerciam
com tanta confiança em si mesmos. Ser funcionário régio passa também a
significar o saber, o prestígio, o fascínio da detenção da memória.
A acção prática
executada pelos inquiridores constitui para toda a população anúncio de uma
atitude inaudita. Era como se a sua viagem fosse uma espécie de missão para
proclamar a boa nova, anunciando o fim da arbitrariedade e das violências que
tinham dominado os vinte anos do reinado anterior. Ora a mensagem chegava a
todas as freguesias e envolvia directamente a maioria da população local, mesmo
os mais pobres. Para se compreender a sua amplitude basta dizer que só em Entre
Douro e Ave foram directamente inquiridas 3414 testemunhas. Em certos julgados
mais populosos, como os da Maia e de Guimarães, ouviram-se mais de 500
testemunhas. A demonstração foi, portanto, sistemática, abrangente e espectacular.
Os camponeses acostumados a práticas tão diferentes não podiam esquecê-la
facilmente.
Em terceiro lugar, as
insistentes perguntas dos inquiridores demonstravam que não bastava o consenso
comunitário para legitimar os usos e direitos. Era preciso consigná-los por
escrito. Ao arbítrio pessoal, aos acordos orais facilmente esquecidos e
violentados, devem substituir-se os contratos jurídicos. A lei deixa de ser
aquela que o senhor dita por meio do seu banus e como intérprete incontestado do costume. Tem
de estar fixada em pergaminhos que desafiam o tempo e permanecem iguais para
além da morte de quem os lê. Finalmente, a missão dos inquiridores torna-se uma
demonstração prática de que entre o rei e a população passará a interpor-se a
representação; e quem a irá assegurar não vão ser os ricos-homens governadores
das terras, que exerciam o seu poder em nome próprio, mas os funcionários e
letrados, a aristocracia cortesã. O rei passará a viajar muito menos.
Deixa de surgir como uma
visita do céu para repor a justiça e a paz, mas passa a estar presente, sempre
e em toda a parte, por intermédio dos que ele coloca em cada circunscrição
territorial para impor a sua vontade e fazer cumprir a lei. Ora esta imensa
revolução abrangeu todo o norte do reino, justamente aquela região em que o
poder régio sofria maiores atropelos por parte de leigos e eclesiásticos. No
resto do país não eram precisas inquirições. Aí o regime municipal preservara,
na prática, as noções de direito público e o rei surgia como o senhor directo
da população, apesar das liberdades e privilégios concelhios. Que fez o rei com
o resultado dos depoimentos tão escrupulosamente registados pelos seus
escrivães em longos rolos de pergaminho? Aparentemente, nada. É uma das
surpresas que este período da acção política de Afonso III suscita a quem o
examina. O mais irritante, para o historiador, é não saber se este vazio se
deve a uma lacuna de informação ou se de facto o rei se limitou a entregar o
cadastro ao mordomo-mor para ele saber o que podia exigir aos mordomos locais
como pagamento das rendas devidas à coroa. Quem lê hoje o estendal de
sonegações feitas pelos senhores locais (ou interpretadas como tal pelos
inquiridores) esperaria que o rei tomasse medidas claras e vigorosas para
assegurar a eficácia da cobrança. Ora, se alguma coisa mudou, não restam disso
vestígios evidentes. Não é impossível que uma análise muito pormenorizada dos
actos administrativos revelasse algumas alterações da prática; mas para isso
seria necessário proceder a levantamentos minuciosos e sistemáticos sobre
centenas ou milhares de documentos. Talvez um dia algum investigador mais
escrupuloso e paciente se disponha a tentar esta tarefa de resultados incertos.
Se a documentação actualmente existente é de facto representativa das acções e
da política régia, pode então admitir-se que Afonso III se limitou a consolidar
as formas de execução prática dos valores ideológicos representados pela
escrita e pela imposição da lei, pela fidelidade dos seus representantes
locais, pelo respeito a eles devido e pela difusão da noção de representação.
Ou seja, por meio de uma política administrativa que não deixou vestígios
directos na documentação. Por meio da eficácia burocrática. O mais provável é
que se tenha verificado um aperfeiçoamento gradual da máquina administrativa, e
não uma mutação brusca». In José Mattoso, O Triunfo da Monarquia
Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História Política, Revista Análise Social, volume XXXV, 2001.
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