quarta-feira, 16 de novembro de 2016

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «O Príncipe adorava ler a obra do pai, que encontrava na viuvez, além do seu símbolo escolhido, a roda gotejante e a palavra “Jamais”, tempo para a conquista e para a escrita. Leu com paixão o “Tratado de Melícia…”»

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O Primeiro Voo do Falcão
«(…) Quando o Príncipe João fez catorze anos foi nomeado seu camareiro Antão Faria. Seu camareiro e, por força das circunstâncias, seu confidente. Nunca mais o abandonou, até à sua morte. Nesse ano soube-se, na Itália, do casamento da bela Clarice Orsini com o feio Lourenço Médicis que, para inveja de muitos, possuiu a belíssima aristocrata, de quem a própria sogra dizia que era de boa estatura e pele branca..., sua mão longa e delicada, uma jovem muito superior à média, mas que se não pode comparar a Maria, a Lucrécia, a Bianca. No entanto, a nora tinha um jeito de boa qualidade, o que deverá agradar mais ao marido que à sogra! Falava-se, até aqui, em Portugal, na Orsini. Por causa da língua afiada e solta dos mercadores da Itália que tudo traduzem e de tudo falam. Alguns, ricos, tinham os filhos a estudar em Florença, pois aí aprendiam fluentemente o Grego que é a língua falada pelas pessoas da aristocracia e cultura. Na mesma altura tinha sido jurada em Ávila herdeira de Henrique IV ao trono de Castela sua irmã Isabel que casa então, com dezanove anos, com o primo Fernando de Aragão. Preparava-se, lentamente, o destino de muita gente...
Era altura de concretizar o que o Rei prometera ao irmão morto. Por isso Afonso, quando o Príncipe faz os quinze anos, prepara tudo para em Janeiro ele receber, por palavras, de presente, dona Leonor, pois a bula papal autorizando o casamento chegara de Roma. A jovem tinha doze anos e não houve festejos por causa da morte recente do pai da noiva.
Organizava-se a tomada de Arzila e, desta vez, o Príncipe, saído da infância, com responsabilidades e casa própria, quer participar. Do pai, sempre brando e sensível, com rompantes de meiguice incontrolável, tem a melhor das ideias. Adora o pai, tal como a irmã, mais velha, culta, muito crente, que é linda, mas cuja beleza lhe é indiferente, ao contrário das jovens da sua idade, pois tem um pendor manifesto para o recolhimento e a vida religiosa, dona Beatriz Menezes, que governava a casa da Rainha-mãe, educara-os até aos sete anos. Ela fora casada com um fidalgo ilustre. Depois foi nomeado para preceptor do Príncipe, Diogo Soares Albergaria, entretanto morto o marido de dona Beatriz e entrando esta num convento, foi substituída por dona Beatriz Vilhena, esposa do Albergaria. A tia Filipa visitava-os amiúde e exerceu sempre uma influência muito poderosa em dona Joana que, mesmo depois de perder o estatuto de herdeira do trono com o nascimento do irmão, não deixou nunca de ser tratada por Princesa e não por Infanta. Entre dona Filipa, culta, sensível, exímia na pintura de iluminuras, tradutora de textos latinos e escritora de textos religiosos e místicos e aquela sobrinha em cuja alma brilhava uma luz especial e deslumbrante de pureza, amor e fraternidade fortaleceu-se uma ligação tão intensa e duradoura que só a morte conseguiu cortar. O Príncipe adorava ler a obra do pai, que encontrava na viuvez, além do seu símbolo escolhido, a roda gotejante e a palavra Jamais, tempo para a conquista e para a escrita. Leu com paixão o Tratado de Melícia Conforme o Costume de Batalhar dos Antigos Portugueses e o Discursa em que se mostra que a constelação chamada do Leão Celeste consta de vinte e Nove Estrelas e a menor de duas. Abraão Zacuto, que viveu em Portugal e daqui saiu por causa da expulsão, citava com bastos elogios esta obra.
O Príncipe montava, exercia o corpo e os músculos diariamente, jogava as armas, corria, nadava primorosamente. Adorava toiros, justas, canas, torneios. Cultivava o Latim, que escrevia e falava. Como jovem idolatrava a montaria e a cetraria.
Agora, casado, considerava-se um homem. Gorara-se o casamento, previsto em 1463, em Gibraltar, quando o pai regressava de África, entre ele e a prima, a pequenina dona Joana que apenas tinha três anos..., mas Afonso preferira a própria sobrinha. Embora ainda não tivesse iniciado a vida de casado, dado a noiva não ser ainda núbil, como era da praxe, João, à face da lei e de Deus, era casado com dona Leonor. Agora queria apenas acompanhar o pai a Arzila…» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT