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«(…) A essencial perversidade do eros,
intuída muito cedo por Eça, tem agora uma explicação positivista, a idealização do mal
e da infracção pela criminosa poesia romântica. A devoção religiosa, cuja
iniquidade na formação feminina foi já denunciada, e que convoca, aliás, aspectos
semelhantes aos do erotismo, emotividade, imaginação, irracionalidade e
ociosidade, é também visada n’ As Farpas através, por exemplo, da caricatura do
sermão obsceno e pela intuição da recíproca contaminação entre o erotismo e o
misticismo. A questão do casamento, associada à do adultério, surge logicamente
num quadro de preocupações morais dominado pela questão feminina, e tão
insolúvel, parece, como esta. Numa Farpa datada de Outubro de 1872, Eça dedica
muitas páginas à análise minuciosa do traição conjugal, a que apenas a
revolução, pela ciência de Proudhon, começa a dar uma solução racional e
positiva. De qualquer forma, a disponibilidade das mulheres para o amor,
disponibilidade orgânica e cultural, constitui o principal factor do adultério.
A aprendizagem exclusiva da sedução, aliada à inacção física e à desocupação
intelectual, desenvolve, nestas Circes quietas e perigosamente imaginativas, as
pérfidas artes de adormecer e seduzir. E se, de facto, é na moral convencional
um chique ter tido amantes casadas, e o sedutor se torna mais sedutor pela sua
auréola perfumada, o autor apressa-se a declarar que, em Portugal, Satanás anda
longe. Ou seja: a virilidade não tem, para sossego dos maridos, representantes
condignos em Portugal. A visão genérica de uma cultura dominada pelo
omnipresente erotismo feminino será justamente a súmula temática do opúsculo de
Proudhon, publicado em 1875, La Pornocratie ou Les Femmes dans les Temps Modernes.
A aliança da misoginia à reflexão política e social, no intuito justiceiro de
farpear a tolice, com o seu Proudhon mal lido debaixo do braço, antecipa-se
nestas Farpas de Eça. A sua exuberância e simetria simbólica, o reportório
figurativo que mobiliza, revelarão o prodigioso efeito seminal da leitura do
filósofo, e constituirão uma chave interpretativa que a leitura da ficção de
Eça de Queirós não pode dispensar. No entanto, duas questões ficaram por
responder: pela ciência de Proudhon, qual é a solução racional e positiva para
o adultério? E, se o adultério acontecer e for descoberto pelo marido, como
pode este reagir-lhe? A resposta à primeira pergunta é simples: colocar a
mulher nas ocupações da família, eis o que achamos de mais genérico para evitar
a dissolução do casamento. A actividade, mesmo lúdica, deserotiza a mulher, é
um antídoto da idealização: toda a mulher que se não cansa, idealiza. Em todo o caso, ao desprevenido marido,
resta a reacção mais conforme ao seu temperamento: todos estes infelizes se
desesperaram; mas, com a lógica do seu carácter, o bárbaro generoso mata, o
civilizado infame faz assinar a letra. Apraz-nos observar, nas várias
representações de maridos enganados de Eça, a hegemonia absoluta de civilizados
infames. Em suma: no adultério em Portugal, à inferioridade do sedutor e à
debilidade da seduzida, corresponde a frouxidão do ofendido. Pelo menos durante
os quinze anos seguintes às Farpas, praticamente todo o discurso não-ficcional
de Eça reitera, especifica e dilata as teses de 1871, e as subsequentes
aplicações nos dois romances que entretanto publica: O Crime do Padre Amaro (1875
e 1880) e O Primo Bazílio (1878). Da mesma forma, falando sobre o seu próprio
casamento, em 1885, Eça não resiste a normalizá-lo ideologicamente, colocando-o
sob o signo anti-romanesco do amor-amizade. A partir de 1872, o discurso
crítico firma-se na opção ideológico-estética do Realismo-Positivismo, estabelecendo-o
como um discurso da verdade, iluminador, justiceiro e redentor. Trata-se agora
de entranhadamente investir o discurso literário de um mandato cívico: o de
coadjuvar a Revolução, tudo revelar, para tudo mudar. E este tudo
insidiosamente se especializa na verdade do sexo, uma verdade que o idealismo
mascarou de sublimidade. Por outro lado, sendo o novo movimento
progressivamente revestido dos valores fulgurantes da virilidade vigorosa, é,
assim, perfeita a simetria com a feminizante e corruptora decadência literária,
cuja temática amorosa, num curioso processo de denegação, exaspera sempre Eça
de Queirós». In Ana Luísa Vilela, Erotismo Queirosiano, Universidade de Évora,
ContraNatura, Wikipedia.
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