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«(…) Francisco sempre
foi o fantasma que assombrou o rei, o seu duplo, o desenho que o seguia pelas
paredes dos corredores da corte. O pavor de ser substituído pelo irmão era tão
forte que dominou o carácter de João. Deixou para trás mulheres atrás de
mulheres para ter a certeza de que nunca seria o contrário. Eu, nesse número.
Vejo-o deitado nu, no leito do quarto de cima, a cabeça apoiada na palma da
mão, o cotovelo fincado no colchão, durante toda a noite, sem dormir, só a
ver-me, como um abutre à espera da presa inanimada ou morta, sem que isso fizesse
a mínima diferença. Se me deixas, mato-te, disse-me no aposento mais luxuoso de
Odivelas, o mais sumptuoso da casa que o rei construiu para engaiolar o nosso
amor. O que é meu teve o que de mais bonito Deus sonhou e o homem ergueu. A luz
das velas bruxuleava, tudo ficava banhado a amarelo, duplamente dourado,
duplamente quente, o sol do fim de dia, o suor da dobra interna dos joelhos.
Quero-te nua. Dizia-me
isto já eu estava despida há muito. O meu leito, inspirado na última moda,
tinha quatro apoios com santos em ouro maciço. Porque até os santos devem estar
aos teus pés, Paula. Dentro do meu novo espaço eu era outra pessoa que não
Madre Soror Rameira. Era um animal. Andava despida o tempo todo, o cabelo caído
e revolto, ia e vinha com comida, com bebida, com pedidos, reclamações, ciúmes.
Ele deitado na cama, sorria. Ouvi dizer que tens muitas outras no Paço, aias da
rainha, fidalgas. É verdade? Só te amo a ti, Paula. Mas tomas outras,
entreténs-te com muitas ao mesmo tempo. Não te dou tudo? Cala-te. E levantava-se,
vinha atrás de mim e suportava os meus gritos e o meu gesticular,
imobilizava-me e levava-me para a cama, o peso dele em cima de mim, a mão dele
a tapar-me a boca.
Não grites que
estamos num convento. Eu tentava falar. A casa de Deus não é para ser
conspurcada. E a outra mão dele já estava bem longe da minha boca e eu já não
queria gritar, só gemer. E João continuava a sussurrar. E agora? As duas mãos,
delicadas e inquisidoras, com nenhum outro propósito a não ser regar-me como se
eu fosse uma planta à procura de água. João foi buscá-la dentro de mim de todas
as vezes que fizemos amor. E depois entrava sem pedir licença, já sem meiguice,
Porque sabia que eu o desejava até ao fundo, se pudesse não o deixaria sair
nunca mais, abraçava-o e apertava-o até o impedir de se mexer. O que é que estás
afazer, cigana? Adorava que me chamasse cigana. Depois, quando descobri que Sua
Majestade andava a fornicar uma verdadeira cigana, Margarida do Monte, proibi-o
de deslocar o epíteto. Não queres que me mexa, cigana? E levantava-me no ar,
sentava-me em cima dele e exigia que o olhasse nos olhos enquanto os nossos
corpos se moviam ao mesmo ritmo e compasso. Mais fundo, meu amor? Se era dia em
que eu precisava que me mostrassem quem é que mandava, João ainda me virava de
costas na cama e, sem pudor, puxava-me o cabelo até eu desfalecer de dor e
prazer e gratidão. Os lençóis de puro algodão manchados de lixo de desejo.
A janela pareceu-me
demasiado estreita para deixar passar um só raio de sol ou de esperança.
Comparável a esta cela, só a da minha Luz. Quando eu entrei, ela já havia
professado. Era a monja mais solitária que este mundo já viu. As outras
troçavam porque era pobre, debaixo do hábito não espreitavam sedas nem laços,
os sapatos estavam rotos e sem salvação. A entrada para a quinta de Vale de
Flores precede o largo D. Dinis, rei que mandou construir o mosteiro depois de
ter visto a sua vida poupada num feroz combate com um urso. O pai sabia muito
sobre as desventuras e os esquivanços da monarquia e não se cansava de nos
contar essas histórias. O monarca Dinis e a rainha Santa Isabel passavam
temporadas nas termas de Monte Real e o rei aproveitava para caçar nas redondezas.
Um dia, saiu cedo e sozinho, a cavalgar pelo mato, à procura de alvo sério. A
meio do caminho, sem saber como nem porquê, foi surpreendido por um enorme urso
que, com a sua pata imensa, o derrubou do cavalo e se lhe lançou em cima.
Debaixo do animal, o rei não podia mexer-se. Num instante, lembrou-se de São
Luís, príncipe que passou sete anos em cativeiro e depois desistiu de honras e
títulos para tomar o hábito religioso, chegando a Bispo de Tolosa, e pediu
ajuda a este santo. São Luís ouviu o pedido de socorro do rei e apareceu-lhe,
lembrando-o do punhal que tinha na cintura. O rei puxou-o e devolveu a surpresa
ao animal. Foi a correr ter com a Rainha Santa Isabel e relatou-lhe o milagre.
Mandou escudeiros irem buscar o urso morto e passeá-lo pelas ruas de Monte
Real. A história rendeu-lhe toda a região... O rei mandou construir um mosteiro
na quinta de Vale de Flores e doou-o às monjas bernardas». In Patrícia Muller, Madre Paula,
Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.
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