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O amigo da rainha
«(…) Vasco visitara-a no calabouço
e salvara-a da morte, a troco de lhe ficar com a vida. Tinha de deixar o Minho
e instalar-se no Alentejo, onde ninguém a conhecia. Tinha que se ajuntar com um
homem novo, de nome Gonçalo, que era natural de Terras de Bouro. E com mais um
corcunda e três anões passariam a espiar para a Coroa de Portugal, disfarçados
de jograis. Matilde aceitara de bom grado a proposta. Antónia conhecera-a mais
tarde com seus companheiros, ali em Olivença. Vira-a esbelta e radiosa, junto
com Gonçalo, mais Luís, o corcunda, e Tristão, Cícero e Madalena, os anões. Ao contrário
de Matilde, Goncalo não era um condenado resgatado à justiça, mas um simples
jornaleiro que preferira a vida de aventura, na companhia de uma bela mulher, a
ser pastor ou guardador de corpos. Antónia vira o grupo, mas sempre pressentira
que ali havia ardil.
Matilde mantivera sua história,
mesmo perante a surpresa dos fantoches. Se calhar era ela Antónia, que por ter
sido casada com os chefes dos espiões d’el-rei de Portugal, buscava artifício
ou dissimulações onde nada de extraordinário se passava. As duas continuaram a
beber a infusão, enquanto em sua memória os mortos viviam. A certa altura,
Matilde afirmou: sim, dona Antónia, Vasco Melo era um homem bom. Implacável em
seu ofício, mas nunca usou seus poderes para executar uma vingança pessoal, ou
para fazer um favor a um amigo… A não ser os d’el-rei Manuel… Ora, mas os
interesses d’el-rei eram os da própria Coroa. E nunca tentou seduzir-te... Dona
Antónia! Ora, amiga, conheceste-o muito antes de nos casarmos e ele era um mulherengo
afamado. Poderia ser, mas nunca tentou nada comigo, nem no dia em que me
resgatou da morte. E eu teria feito tudo o que ele pedisse para me livrar da forca.
Logo ali, ou na cama ou na sombra da árvore que ele escolhesse..., e não teria
sido sacrifício nenhum. Por certo que não. Já seu amigo era mais atrevido. Quem?
O Castro. Dom Miguel? Esse mesmo. Deitaste-te com ele? Não, mas olhava-me sempre
de modo mais insinuante. E durante meu adestramento, tinha uma colega que Vasco
salvara do degredo da Mina. Ai, sim? Pois sabei, dona Antónia, que o Castro seduziu
essa mulher e que se entretiveram semanas a fio até Vasco ter posto o amigo na ordem.
E que foi feito dessa tua colega? Foi para a Dinamarca, e os anões chegaram a trabalhar
com ela. Era mulher mais dura que eu, capaz de lutar e de matar por suas próprias
mãos..., e quase tão bonita quanto eu. E, quando Vasco morreu, ela já regressara
ao reino e ainda trabalhei sob suas ordens. Estás, então, a falar da Violante,
que em seu regresso ajudei a transformar em Constança de Melo? Essa mesmo. Não sabia
que fora degredada para a Mina. Era uma mulher extraordinária. Vasco escolhia bem.
Sabia
aproveitar as ocasiões. Mas em certa altura conheci uma nossa agente em Valhadolid,
e asseguro-vos que era bem feia, sem dentes, com pelos na cara e os cabelos a rarearem.
Nem todas em meu mester estavam destinadas à arte de sedução. E tu, quantos
tiveste de seduzir? Matilde recordou uma noite, em Inglaterra, em que rondara seu
alvo e até o beijara, antes de o matarem e lembrou outra, em Castela, em que se
deixara desnudar para matar, mas em nenhuma dessas vezes consumara o acto com as
vítimas. A velha mulher preferiu ocultar esses episódios de sua vida. Em minhas
representações insinuava-me para todos os que me viam, mas nunca usei meu corpo
em tarefas de espionagem. Meus jogos de sedução ficaram reservados para o Gonçalo,
pois tinha de o manter satisfeito e tranquilo. E isso foi fácil?» In João Paulo
Oliveira Costa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.
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