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O primeiro voo
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O moribundo agitou-se, tentou recuperar o fio e quando quis falar expirou num
vómito de sangue, com os olhos muito abertos, fitando o rival. Álvaro
baixou-lhe as pálpebras, colocou o fio ao pescoço e ergueu-se. Voltou aos
combates; passou por ruas fumegantes e viu a soldadesca inebriada com o
triunfo. Havia quem carregasse arcas, tecidos e toda a sorte de objectos; num
canto, um magote de gente ria ao observar um homem que violava uma jovem
enquanto gritava: sente, moura danada, o que minha irmã sofreu às mãos dos
teus. A cidade caíra, porém, havia bolsas de resistência. Álvaro não queria participar
no saque e procurou guiar-se pelo alarido. Acabou por se cruzar com o infante Henrique
e voltou ao prélio na companhia do seu senhor. A espada voltou a rasgar a carne
de adversários e a sua coragem foi percebida pelo infante. No final do dia
afastou-se das celebrações. Sentia-se honrado pelas palavras do infante
Henrique, que lhe prometera a honra da cavalaria, e desistira de morrer. Tinha
um filho... Um filho que teria o nome de outro. Enquanto ouvia os cânticos dos
vencedores e os gemidos dos vencidos, Álvaro contemplava o fio do tempo, que
afinal não fora interrompido, mas que não sabia como iria prosseguir. Macambúzio,
só sentiu um leve entusiasmo quando a espada de Henrique tocou nos seus ombros.
Os feitos da manhã do dia 21 de Agosto haviam-no tornado famoso, e até el-rei o
chamara para louvar a sua audácia e presteza. Ajudara a resgatar o corpo de Jerónimo,
que fora sepultado na antiga mesquita, transformada agora em igreja matriz.
Soubera, entretanto, que por um incrível golpe da roda da fortuna, duas das
testemunhas do incidente da serra de Monchique tinham perecido. Pedro Sá
apanhara a peste na embarcação e finara-se em pouco tempo. Fernando Góis
morrera em combate, atingido pelas mesmas pedras que derrubaram fatalmente
Vasco Fernandes Ataíde, vedor da Casa do infante Henrique. Só restavam Tristão
Coutinho e o primo do alcaide de Silves, porém, do seu amigo nada transpiraria,
e o algarvio parecia de confiança. Além disso, se abrisse a boca não teria quem
confirmasse a verdade. O cadáver de Jorge Távora, por sua vez, também não
revelou o crime; no local da queda os parentes encontraram apenas alguns ossos,
pois o corpo servira de repasto a lobos e a aves necrófagas.
No
final de Agosto, Álvaro Ataíde regressou ao reino, na companhia do rei; em
Ceuta ficara uma guarnição sob o comando de Pedro Meneses. Portugal dava uma
nova forma ao seu destino. Estava a armada real a zarpar da cidade africana,
quando uma brisa mais forte soprou por entre as fragas cimeiras da serra de
Monchique. A jovem águia voltou a abrir as asas, desafiando desajeitadamente o
precipício. O seu esforço foi coroado de êxito e a pequena ave realizou o seu
primeiro voo. Tinha o mundo a seus pés... Era tempo de descobri-lo.
Fugaz
reencontro
Quando
acordou, na manhã seguinte, estava um dia soalheiro, como o anterior, e Álvaro decidiu
passear pela cidade e visitar o Convento do Carmo, para confirmar se o superior
pusera cobro à irresponsabilidade do frade sineiro. A sua vetusta idade não lhe
tolhia o gosto de andar, mesmo que fosse devagar e com a ajuda do seu bordão. Além
disso, conhecia tanta gente, que durante a sua travessia parava um bom par de vezes
para conversar com amigos. Aprazou com o criado que o fosse buscar ao convento a
seguir às vésperas, num carro, pois já não teria pernas para empreender nova
caminhada de volta para a Alcáçova. Começou a descida, dirigindo-se para a Sé, e
a primeira figura conhecida com que se deparou foi o médico Antão Vaz, seu
amigo havia mais de quarenta anos. Prazenteiro, Álvaro saudou-o: bons dias, mestre
Isaac». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo
de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.
Cortesia
CL/TDebates/JDACT