sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O Fio do Tempo. João Paulo O. Costa. «Numa outra mesa comentava-se o caso do aprendiz de alfaiate que fora dado como desaparecido, havia quase um ano, e que acabava de chegar a Lisboa acorrentado; o estouvado do rapaz deixara-se tentar…»

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Fugaz reencontro
«(…) O sexagenário perturbou-se com a saudação. Senhor dom Álvaro, bem sabeis que abracei a religião cristã vai para três anos e que tomei nome mais apropriado à minha nova fé. Ora, amigo, deixai essa farsa para os outros. O médico irritou-se com a impertinência do fidalgo. Farsa, dizeis vós? Olhai ali para baixo. Porventura está aí a judiaria onde nasci e vivi? Vedes lá a sinagoga onde celebrei a minha fé, sábado após sábado? Tudo nos foi tirado... Mantivestes vossos cabedais... Grande obra a d'el-rei, que nos obrigou a mudar de religião, que nos fez sair das nossas casas, mas que não roubou todo o nosso dinheiro. Roubá-lo-á, se eu decidir partir para fora deste reino. Senhor dom Álrraro, sei que não fostes mal-intencionado ao mencionardes o meu antigo nome, mas respeitai a minha nova condição. E desculpai-me a pressa, porém, um paciente espera-me. Álvaro observava o cristão-novo, enquanto este seguia o seu caminho, amaldiçoando a hora em que el-rei Manuel impusera a expulsão dos judeus. Passava ao lado da Sé, quando topou com João Nova, alcaide-menor de Lisboa. Sabeis a notícia, senhor dom Álvaro? El-rei nomeou-me capitão-mor da armada que há-de ir à Índia no próximo ano.
O Ataíde saudou a novidade, pensando: não viverei para ver o seu regresso... Quiçá, nem o veja partir. Felicito-vos, meu bom amigo. Partis antes do regresso da armada que por lá anda? Tem de ser, pois de outra forma el-rei só mandaria armadas à Índia, ano sim, ano não. Pedro Álvares e os seus capitães deixar-nos-ão mensagens nos portos de Sofala e de Melinde, ou junto ao Cabo. Deus vos guarde... E tende cuidado, pois estou certo de que os índios não são cristãos. João Nova desapareceu por entre as gentes que enxameavam as ruas de Lisboa e Álvaro desembocou na Rua dos Mercadores, que atravessava toda a parte baixa da cidade. O Ataíde sentiu o sortilégio do tempo. Ficou parado demoradamente, encostado a uma parede e amparado ao bordão. Os transeuntes como que se esfumaram e ele reviu aquela mesma rua tal como entrara nela em Setembro de 1428, havia setenta e dois anos.
Lisboa festejava o casamento da infanta dona Isabel com o duque da Borgonha e a Rua dos Mercadores era palco de justas memoráveis. Álvaro era o campeão da tarde. Montado no corcel favorito, de lança em riste, com a armadura negra que adoptara quatro anos antes, galopava à desfilada, derrubando os adversários à primeira; as donzelas sorriam-lhe e lançavam-lhe flores; os rapazes ofereciam-se para que os tomasse por pajens, e os cavaleiros não escondiam a sua admiração. A cada triunfo ele erguia a lança, soltava um urro pleno de raiva e de orgulho e recolhia-se aguardando novo desafio. Na outra extremidade da rua estava Charles Gant, envolto na sua armadura luzidia coberta por uma túnica verde e branca. O flamengo empinara a sua montada e partira à desfilada contra Álvaro; este esporeou o Bonito, que iniciou a corrida. Sacudido pelo galope, de viseira baixa, Álvaro via apenas a silhueta do adversário a crescer; o sol faiscou no elmo emplumado de Charles, Álvaro apontou a lança ao alvo resplandecente e o flamengo foi projectado pelos ares. O impacte foi tão forte que o Ataíde só se manteve na garupa à custa de muito esforço. O rival rebolou pelo chão da Rua dos Mercadores.
O coração de Álvaro batia acelerado, como no momento em que derrubara o cavaleiro de Gant. Não se contendo, ergueu o bordão e repetiu o seu grito de guerra. Um escravo d'el-rei que o reconheceu perguntou-lhe se precisava de ajuda, porém, ele já se recompusera. Estava um pouco cansado e resolveu parar na adega de Júlio Gomes. O interior do estabelecimento estava animado. Junto à porta, um tanoeiro de meia-idade ditava uma carta a um clérigo; a missiva tinha por destinatária a mãe, que não via desde que deixara a sua aldeia, no termo de Abrantes, e rumara a Lisboa, ia para vinte anos. A seu lado, dois rafeiros entretinham-se com uns ossos que a ajudante do taberneiro lhes dera. A um canto, Febo Antunes, sapateiro, conversava discretamente com uns estrangeiros, sem reparar no jovem negro que o observava pelo canto do olho, enquanto petiscava azeitonas e conversava, entusiasmado, com uma mulata de corpo bem-feito. Numa outra mesa comentava-se o caso do aprendiz de alfaiate que fora dado como desaparecido, havia quase um ano, e que acabava de chegar a Lisboa acorrentado; o estouvado do rapaz deixara-se tentar e embarcara num navio que fora negociar aos rios da Guiné sem autorização d'el-rei. Os contrabandistas haviam sido interceptados por uma caravela da Coroa e os seus bens apresados. Os membros da tripulação não iriam escapar a uma dura pena; muito provavelmente seriam degradados para as praças de África, que tinham sempre guarnições incompletas. Quiçá, mandam-nos para a ilha de São Tomé, já que gostam tanto de navegações... Ui, que não duram muito tempo. Um primo de um vizinho da minha comadre foi com o capitão Álvares Caminha, mas chegou-lhe uma febre ao cabo de dois meses e o pobrezito finou-se numa semana. El-rei mandou povoar outras ilhas dessas paragens alongadas. O melhor que têm a fazer é aproveitar-se das negras, enquanto não lhes chega a febre». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.

Cortesia CL/TDebates/JDACT