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Fugaz
reencontro
«(…)
Podem fazer mulatinhas jeitosas, acrescentou um dos interlocutores, cujo bafo a
vinho era particularmente notório, apontando para a mulata que conversava na
mesa do lado. Dois olhos riram-se e começaram a aproximar-se da moça com um
olhar alarve, porém, dois homens corpulentos, um branco e outro mulato,
interpuseram-se, com um aspecto suficientemente ameaçador para demover o
assédio. O sapateiro e os seus amigos continuavam o diálogo. entretendo-se com
uns nacos de toucinho assado acompanhados de castanhas e pão de centeio. A
certa altura, as conversas foram interrompidas por um cacarejar intenso vindo
dos fundos, quando um escravo do taberneiro pegou numa das ocupantes do
galinheiro; contudo, ninguém ouviu, pouco depois, o som do cutelo. Sentado, com
o seu quartinho de vinho entre as mãos, indiferente ao alarido que ecoava pela
sala, Álvaro conversou com dois rapazes que se dispuseram a ouvi-lo, e recordou
uma vez mais as suas proezas de cavalaria vividas ali mesmo no tempo d'el-rei João,
o primeiro. Os dois moços ouviam a sua descrição, fascinados, até que um deles
perguntou: e por que razão tinha vossa senhoria uma armadura negra?
Nesse
momento Álvaro transfigurou-se e afirmou: estava de 1uto... O pior dos lutos.
E, olhando-os com um ar ameaçador, disse: deixem-me. Os dois rapazes abandonaram
a mesa pois o velho centenário parecia bem capaz de brandir o seu bordão com
força e eficiência. Álvaro retirou a ampulheta do bornal. Colocou-a em cima da
mesa e contemplou o fio contínuo do tempo, sem que os seus olhos capturassem a
beleza da mulata ou a sofreguidão com que um dos ingleses devorava a galinha.
Desejava ardentemente voltar a ver a areia a subir e a ampulheta fez-lhe a
vontade.
Corria
o ano de 1424, nesse mesmo mês de Outubro, e um grupo de dez cavaleiros percorria
tranquilamente a estrada que ligava Marialva a Trancoso. Quando a vila surgiu à
sua vista, um dos cavaleiros aproximou-se do principal. Senhor Álvaro,
poderemos pernoitar naquela estalagem. Imponente no seu alazão, coberto por uma
túnica amarela e roxa com as suas insígnias, tendo ao lado um pajem que empunhava
o seu pendão, Álvaro Ataíde fez um gesto de assentimento. Vai ver se têm
acomodação para nós e para as montadas. Virou-se, sorridente, para outro
cavaleiro do grupo. Tristão, sabe-te bem regressar ao nosso Portugal? Tristão
Coutinho acelerou o trote e colocou-se a seu lado. Já era tempo de regressarmos, meu amigo.
Cobriste-te de glória e honra num cento de torneios, ajudámos el-rei Henrique,
que Deus haja, a vencer os franceses. Este é o momento de voltarmos ao serviço
do senhor infante..., desde que já tenhas mesmo esquecido os teus infortúnios.
Álvaro
suspirou; aparentemente distraído, de olhar ausente, levou a mão ao bornal onde
estava a ampulheta, e Tristão Coutinho percebeu que os fantasmas do passado
ainda estavam presentes. No final da coluna dois escudeiros conversavam: os
nossos amos andam sempre juntos..., parece-me que em demasia. Cala-te, Afonso.
São bons amigos. Pois. Porém, nestes oito anos que andámos com eles, divertimo-nos
com muitas moças, mas eles até fugiam das saias. Ora, Afonso, não sabes que o
senhor Álvaro, antes de partirmos para a nossa aventura, tentou entrar para a
regra monástica em Alcobaça? E como não o deixaram entrar na ordem, fez votos
pessoais de castidade. Seja... E Tristão Coutinho? Também seguiu essa sandice
de não ter mulheres? É apenas um homem discreto. Lembras-te da Nicole, em
Paris, da Brígida, em Bruges, da Susan, em Cantuária, ou da Pauline, em Nantes?
Com todas elas dormiu o senhor Tristão Coutinho. E houve outras. Em Londres, uma
noite, ficou com duas ao mesmo tempo..., umas irmãs sardentas. Só que o faz com
recato, por respeito aos votos do senhor Álvaro. Disse-me uma noite que não
queria tentá-lo, pois a sua jura era sagrada». In João Paulo O. Costa, O Fio do
Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN
978-989-644-135-7.
Cortesia
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