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Observei demoradamente, com desagrado, as suas pernas esverdeadas, extraordinariamente
jovens para uma mulher de sessenta e três anos. Notei com o mesmo desagrado que
o soutien era muito diferente dos já fora
de moda que costumava usar. As copas eram feitas de renda delicadamente trabalhada
e deixavam ver os mamilos. Eram ligadas uma à outra por três Vbordados, marca de
um estabelecimento napolitano de dispendiosa roupa interior para senhora, o das
irmãs Vossi. Quando mo restituíram, juntamente com os brincos e os anéis, cheirei-o
demoradamente. Tinha o odor irritante do tecido novo. Durante o funeral surpreendi-me
a pensar que finalmente já não tinha a obrigação de me preocupar por causa dela.
Notei de imediato um fluxo tépido e senti-me molhada entre as pernas. Estava à cabeça
de um longo cortejo de parentes, amigos, conhecidos. As minhas duas irmãs
apertavam-se a mim, uma de cada lado. Segurava uma por um braço, porque receava
que desmaiasse. A outra agarrava-se a mim como se os olhos demasiado inchados a
impedissem de ver. Aquela descarga involuntária do corpo assustou-me como se fosse
a ameaça de uma punição. Não tinha conseguido verter uma única lágrima: não tinham
brotado ou talvez não tivesse querido que brotassem. Além disso, fora a única a
dizer algumas palavras para justificar o meu pai, que não mandara flores e não viera
ao funeral. As minhas irmãs não tinham escondido a sua desaprovação e agora pareciam
empenhadas em demonstrar publicamente que tinham lágrimas suficientes para chorar
também as que nem eu nem o meu pai estávamos a verter. Sentia-me sob acusação. Quando
o cortejo foi acompanhado durante um bocado por um homem de cor que carregava aos
ombros algumas telas montadas numa armação, a primeira das quais (a que ficava visível
sobre as suas costas) representava toscamente uma cigana seminua, esperei que
nem elas nem os parentes dessem conta. O autor daqueles quadros era o meu pai. Se
calhar estava a trabalhar nos seus borrões naquele momento.
Tinha
feito e continuava a fazer cópias sobre cópias daquela cigana odiosa, vendida pelas
ruas e nas feiras da província há dezenas de anos, satisfazendo por poucas liras,
como sempre, os pedidos de horríveis quadrinhos para salas pequeno-burguesas. A
ironia das linhas que conjugam horas para encontros, para separações, para
velhos rancores, mandara ao funeral da minha mãe não ele, mas aquela sua pintura
elementar, detestada por nós, suas filhas, mais do que detestávamos o seu autor.
Sentia-me cansada de tudo. Desde que tinha chegado à cidade nunca mais parara. Durante
alguns dias acompanhara o meu tio Filippo, o irmão da minha mãe, nas voltas pelo
caos das repartições, entre pequenos mediadores capazes de apressar os tramites
burocráticos dos processos ou experimentando nós mesmos, depois de longas filas
nos balcões, a disponibilidade dos empregados para ultrapassar obstáculos
intransponíveis em troca de avultadas gorjetas. Por vezes o meu tio tinha conseguido
obter alguns resultados ostentando a manga vazia do casaco. Perdera o braço direito
já em idade avançada, aos cinquenta e seis anos, trabalhando no torno de uma oficina
da periferia, e desde então usava aquela sua invalidez ora para pedir favores, ora
para augurar a quem lhos negava a mesma desgraça. Mas conseguira os melhores
resultados desembolsando muito dinheiro que não era devido. Assim, tínhamos obtido
rapidamente os documentos necessários, as autorizações nulas de não sei quantas
autoridades competentes, verdadeiras ou inventadas, um funeral de primeira classe
e, o mais difícil, um lugar no cemitério.
Entretanto,
o corpo morto de Amalia, minha mãe, retalhado pela autópsia, tinha-se tornado cada
vez mais pesado à força de ser arrastado com nome e sobrenome, data de nascimento
e data de morte, perante empregados ora grosseiros, ora simpáticos. Sentia a urgência
de me desembaraçar dele e, no entanto, ainda não suficientemente extenuada,
quisera levar ao ombro o caixão. Tinham-mo permitido depois de muita resistência:
as mulheres não levam caixões ao ombro. Fora uma péssima ideia. Como aqueles que
transportavam o féretro simultaneamente comigo (um primo e os meus dois
cunhados) eram mais altos, receara durante todo o percurso que a madeira penetrasse
entre a minha clavícula e o pescoço, junto com o corpo que continha. Quando o caixão
foi depositado no carro e este se pôs em movimento, tinham bastado poucos passos
e um alívio culposo para que a tensão se precipitasse naquele fluxo secreto do
ventre». In Elena Ferrante, Um Estranho Amor, 1995, Publicações dom Quixote,
Lisboa, 2005, ISBN 972-202-879-0.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT