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(…) O
líquido quente que saía de mim sem que eu quisesse deu-me a impressão de um sinal
combinado entre estranhos dentro do meu corpo. O cortejo fúnebre avançava para a
Piazza Carlo III. A fachada amarelada do Reclusorio parecia-me conter a custo a
pressão do Rione Incis que lhe caía em cima. As ruas da memória topográfica pareciam-me
instáveis como uma bebida efervescente que, agitada, transborda em espuma. Sentia
a cidade dissolvida no calor, sob uma luz cinzenta e empoeirada, e repetia mentalmente
a história da infância e da adolescência que me impelia a divagar pela Veterinaria
até ao Orto Botanico, ou pelas pedras sempre húmidas, cobertas de verdura podre,
do mercado de Sant'Antonio Abate. Tinha a impressão que a minha mãe estava também
a levar os lugares, mesmo o nome das ruas. Olhava a minha imagem e a das minhas
irmãs no vidro, entre as coroas de flores, como uma fotografia tirada com pouca
luz, inútil no futuro para a memória. Agarrava-me com as solas dos sapatos ao empedrado
da praça, isolava o cheiro das flores colocadas sobre o carro, que chegava já podre.
A certa altura receei que o sangue começasse a escorrer-me pelos tornozelos e tentei
separar-me das minhas irmãs. Foi impossível. Tive de esperar que o cortejo virasse
para a praça, subisse pela Via Don Bosco e se dissolvesse por fim num engarrafamento
de carros e gente. Tios, tios-avós, cunhados, primos começaram a abraçar-se uns
aos outros: pessoas vagamente conhecidas, modificadas pelos anos, que só tinham
convivido durante a infância e talvez nunca mais se tivessem visto. As poucas pessoas
de que me recordava nitidamente não tinham dado sinal de vida. Ou talvez estivessem
ali, mas não as reconheci porque delas me tinham ficado, da época da infância,
apenas pormenores: um olho torto, uma perna coxa, a cor levantina da pele. Em compensação,
pessoas de quem ignorava até o nome puxaram-me de parte, contando velhos agravos
que tinham recebido do meu pai. Jovens desconhecidos, mas muito afectuosos, hábeis
em conversa de circunstância, perguntaram-me como estava, como me corriam as coisas,
que trabalho fazia. Respondi: bem, tudo me corria bem, fazia banda desenhada, e
eles como iam? Muitas mulheres grisalhas, completamente de negro excepto o rosto
pálido, louvaram a extraordinária beleza e bondade de Amalia. Algumas
abraçaram-me com tal força e vertendo lágrimas tão copiosas, que oscilei entre um
sentimento de asfixia e uma insuportável sensação de humidade dos seus suores e
das suas lágrimas que se espalhava em mim até às virilhas, ao início das coxas.
Fiquei pela primeira vez satisfeita com o vestido escuro que tinha posto. Ia para
me afastar quando o tio Filippo fez uma das suas. Na sua cabeça de setenta anos,
que muitas vezes confundia passado e presente, um pormenor devia ter abatido
barreiras já pouco sólidas. Começou a praguejar em dialecto em voz muito alta, perante
o espanto de todos, agitando freneticamente o único braço que tinha.
Viram
o Caserta?,
perguntou dirigindo-se a mim e às minhas irmãs, com a respiração entrecortada. E
repetiu várias vezes aquele apelido conhecido, um som ameaçador da infância que
me provocou um sentimento de mal-estar. Depois acrescentou, apopléctico: pouca vergonha.
No funeral da Amalia. Se aqui estivesse o teu pai, matava-o. Não queria ouvir falar
de Caserta, puro aglomerado de inquietação infantil. Fingi que não era nada e tentei
acalmá-lo, mas ele nem sequer me ouviu. Pelo contrário, apertou-me agitado com o
seu único braço, como se me quisesse consolar pela afronta daquele nome. Então
libertei-me desabridamente, prometi às minhas irmãs que chegaria ao cemitério a
tempo para a cerimónia da sepultura e voltei à praça. Procurei em passo rápido um
bar. Perguntei pelo quarto de banho e enfiei-me nas traseiras do estabelecimento,
num pequeno compartimento fétido, com a retrete nojenta e um lavatório amarelado.
O fluxo de sangue era abundante. Tive uma sensação de náusea e uma leve tontura.
Vi na penumbra a minha mãe com as pernas escanchadas que abria um alfinete de
segurança, desprendia do sexo, como se estivessem colados, panos de linho ensanguentados,
se voltava sem surpresa e me dizia com calma: sai, o que fazes aqui? Comecei a chorar,
pela primeira vez desde há muitos anos. Chorei batendo com uma mão quase a intervalos
regulares no lavatório, como para impor um ritmo às lágrimas. Quando dei conta,
parei, limpei-me o melhor que pude com os lenços de papel e saí em busca de uma
farmácia. Foi então que o vi pela primeira vez. Posso ser-lhe útil?, perguntou quando
fui esbarrar com ele; poucos segundos, o tempo de sentir de encontro ao rosto o
tecido da sua camisa, notar a tampa azul da caneta que lhe saía do bolsinho do casaco
e, entretanto, registar o tom duvidoso da voz, um cheiro agradável, a pele nua do
pescoço, uma massa densa de cabelos brancos em perfeita ordem». In
Elena Ferrante, Um Estranho Amor, 1995, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2005,
ISBN 972-202-879-0.
Cortesia
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