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Ele virá antes que o sol me mate. Eu sei que ele virá. Pois se me telefonou
falando que viria. Falou: minha mãe, essa semana sem falta eu vou visitar a
senhora. A vizinha Rosário achou que eu estava maluca, que tinha inventado o
telefonema. Tanto eu brinquei que estava doido na, que agora me tratam como
doida, mesmo. Quem me mandou gostar de brincar com todo o mundo? Com esse dia
assim azul e quente, é hoje que ele vem. Toda a vida amei a praia e o sol; de
manhã cedinho corria até à Praia do Flamengo para nadar antes de ir para o
trabalho. Agora essa luz toda vai acabar comigo. Que vergonha, se o meu filho
me encontrar caída na laje, o vestido branco de linho que eu mesma bordei feito
um trapo velho. E isso que ele vai encontrar, um farrapo de chão em vez de uma
mãe, na casa que foi da avó dele e que ele chama de favelada. A única casa a
que pude chamar minha, herança de minha mãe, que me renegou duas vezes e depois
me chamou para tomar conta dela na velhice. A minha casa de laranjeiras,
limoeiros, roseiras e pássaros. Onde será que anda a minha gatinha? Queria
enxergá-lo só mais uma vez, ao meu filho mais velho, esse que me rejeitou. Faz
quinze anos que não tenho essa alegria. Diz que deprimiu, entrou em crise
existencial, foi parar ao psiquiatra, andou a tomar remédio para a cabeça, caiu
de cama e veio se curar em Portugal, me chamou para cuidar dele lá em Lisboa,
na casa do irmão. Fiz muito bacalhau cozido com grão-de-bico, que ele adora
desde criança, muita cabidela de galinha, para puxar o sangue, e ele foi
melhorando. Sobretudo dei a ele muito amor de mãe, fiz-lhe muito cafuné. Ao fim
de três meses estava bom, acabou se empolgando e comprando casa de férias em
Sintra, voltou para o Brasil e nunca mais quis saber de mim. Não, não vou
pensar assim. Eu quero a felicidade dos meus filhos. Rafinha tem lá a sua
mulher, a sua filha, os seus problemas, as suas mágoas guardadas contra mim.
Apanhou muito quando era menino, é verdade. Papai do Céu que me perdoe, eu não
sabia como dar educação àquele menino e ainda trabalhar, cuidar da casa,
chefiar atelier de costura e atender freguesa ao mesmo tempo. Isso sem a ajuda
do pai, que nessa altura trabalhava à noite no jornal e aparecia em casa,
quando aparecia. Rafinha estava sempre aprontando. Mandava o irmão pequeno
enfiar o garfo na perna da empregada. Aterrorizava os garotos na hora do
almoço, botava arroz no copo de suco deles, quando não lhes esvaziava uma
garrafa d’água gelada na cabeça. Na rua era o brigão, era mau para os colegas
do futebol. Chegava a meter o pé na frente para o amiguinho cair. Na escola, a
directora estava sempre me chamando: minha senhora, o Rafael está suspenso, e
eu sem saber o que fazer ou como explicar. Era um menino muito difícil, sempre
acobertado pelo pai, que achava bonito o filho ser assim, manias de machão.
Para ele, homem que é homem não podia levar desaforo para casa. No fundo,
aquilo era para chamar a minha atenção. Era ciúme. Ciúme dos irmãos mais novos.
Rafinha foi muito estragado pelo pai, eu educava de um lado e Ramiro deseducava
do outro.
Como
eu adorava aquele homem, Nossa Senhora. E tanto que ele andou atrás de mim para
me conquistar. Essa foi a época dourada da minha vida: desquitada,
independente. Desejada. Um pedaço de mulher, corpo de nadadora bem torneado,
com tudo em cima. Bem firme na ideia de nunca mais ser controlada seja por quem
fosse: nem por mãe de criação, nem pelo meu pai, pelo meu ex-marido, por homem
nenhum. Eu tinha talento para a moda, ah, se tinha. Cheguei a ter três
costureiras trabalhando em casa, noite e dia, fazendo vestido de gala para as
madames, tudo com pedras preciosas bordadas à mão. Fiz seis vestidos para o
lendário baile do Theatro Municipal do Rio, no Carnaval de 1954. Vestidos de
luxo que nem em Hollywood. Não esqueço o orgulho que senti, no meio da multidão
da Cinelândia, vendo desfilar as minhas criações na entrada do Theatro. Nem
tinha inveja dos grã-finos que podiam entrar ali, bastava-me com os bailes
oficiais dos clubes e sociedades, era sempre a mais bem vestida. De manhã
cedinho ia nadar no Flamengo, e esse bonitão de bigode me seguia. Ramiro Lobo.
Fiscal da Prefeitura, terno branco, gravata colorida, boa figura, comum sorriso
feito de goiabada. Nos conhecemos porque em 1952 eu aluguei um quarto na casa
da mãe dele. Estava no meu esplendor, com vinte e muitos anos, fazendo nome e
dinheiro como modista, livre do casamento com o Álvaro, um minhoto bruto, em
que me lançara aos dezoito anos só para me libertar da vida de escrava que me
impunha a mulher do meu avô.
Tudo
parecia novo e cheio de futuro naquele princípio dos anos cinquenta no Rio de
Janeiro. Logo, logo, arrumei um apartamento no Flamengo, mas ele continuou me
perseguindo, me esperando na porta, me acompanhando na praia. Era uma coisa...,
chegava a sair cedo da casa da mãe em Copacabana para me ver nadar na Praia do
Flamengo. Ah, Ramiro, como é que você pôde me trair tanto? Não, não vou pensar
nisso, eu já o perdoei há muito tempo. Rosário, minha vizinha, minha santa, me
acode! Ninguém me ouve, meu Deus. Morro de sede aqui caída em frente da minha
própria porta. Como foi acontecer isso? O diabo do meu joelho me traindo. Esse
joelho não gosta de mim, quer me punir por todas as coisas feias que eu fiz.
Logo eu, que sempre vivi em busca da Beleza. Minhas rosas estão tão bonitas». In
Inês Pedrosa, Desamparo, 2015, Publicações dom Quixote, 2015, ISBN
978-972-205-669-4.
Cortesia de
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