sábado, 3 de dezembro de 2016

Desamparo. Inês Pedrosa. «Preferem o sol às chuvas inclementes que por vezes também assolam o simpático país, definido no início do século XX pelo mais internacional dos seus poetas como o rosto que a Europa mostra ao mar»

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«Um silêncio em bruto, como se o torno do mundo não tivesse ainda começado a rodar. Manchas estáticas de verde, pomares interrompidos por casas brancas, amarelas, algumas, poucas, com pórticos em ferro lavrado, escadarias flanqueadas por leões ou jarrões de pedra, dois andares e pátios onde ao fim-de-semana estacionarão automóveis urbanos. Nem os cães ladram debaixo da canícula. Os pássaros desistiram de voar. Na aldeia de Arrifes, concelho de Lagar, milenar dote de princesas e rainhas, nada se move. A carrinha do Centro Social já fez o seu turno, pelas nove da manhã, com duas mulheres de bata azul, para ajudar os velhos que vivem sós a levantarem-se, lavarem-se, vestirem-se, dar-lhes o pequeno-almoço e a medicação e deixar-lhes o almoço. Voltará a meio da tarde com o jantar. Há outra carrinha que os leva para o Centro de Dia, onde podem ver televisão, jogar às cartas ou fazer ginástica. A maior parte deles não quer ir. Dizem que a companhia dos outros velhos os cansa. No parque exterior da turística vila de Lagar, os autocarros continuam a desaguar rios de estrangeiros de chinelos e calções. O calor não os incomoda, sentam-se nas esplanadas a fotografar as muralhas e pedem sangria gelada ou o celebrado licor local, de pêra-rocha, com muitos cubos de gelo. Portugal visto dali é uma paisagem medieval com água potável e confortos modernos, povoada por gente humilde, prestável, dedicada à ciência de ser feliz com pouco. A poucos quilómetros encontrarão praias selvagens e hotéis rodeados de aprazíveis campos de golfe. Preferem o sol às chuvas inclementes que por vezes também assolam o simpático país, definido no início do século XX pelo mais internacional dos seus poetas como o rosto que a Europa mostra ao mar.
Um empregado de café diz a um grupo de turistas que têm sorte, luck, very luck, porque de um calor destes não há memória. Se bem que ele, excepto por motivos comerciais, até prefira a chuva; o caminho da chuva trouxe-o a Lagar há exactamente doze anos. Caíra uma ponte no Norte, lá para Trás-os-Montes, matando cinquenta e nove pessoas que vinham na camioneta da Junta de Freguesia, regressando de um passeio de domingo às amendoeiras em flor. Joaquim morava perto dessa aldeola tornada símbolo de tragédia. Como os corpos afundados não apareciam, e não havia muito que fazer por aquelas bandas, as pessoas começaram a organizar piqueniques à beira do rio ao fim-de semana, para ver se, entre um pastel de bacalhau e um copo de tinto, alcançavam a boa acção de detectar um corpo inchado a boiar, porque não há nada mais triste do que um funeral sem defuntos. Num desses piqueniques conhecera a sua Conceição, que viera com os pais visitar uns parentes e tentar a glória de pescar um morto, já que o pai era bombeiro e especializado em mergulhos. A expedição não teve sucesso, só vinte e três corpos viriam a ser encontrados, mas Joaquim acabou por vir morar para Lagar, aprendeu a ler com a ajuda de Conceição, entrou para a escola, arranjou trabalho no café, casou e tornou-se um homem feliz, pai de um rapazinho de cinco anos. Pensava muitas vezes que se não fosse aquela catástrofe estaria ainda a tratar das vinhas e a coser sapatos à noite, longe dos territórios férteis do turismo. Tudo tem o seu propósito.
As tragédias individuais não são assinaladas por placas, homenagens, celebrações. Falta-nos o tempo para as acolher e são demasiado próximas da nossa vida. Todos os dias morre gente. Na Vila de Lagar a funerária chama-se Zorro, porque é esse o nome de baptismo do seu proprietário, e está escondida no cotovelo de uma das sinuosas ruas que circundam a muralha. Não necessita propriamente de propaganda, os clientes aparecem todos os dias. As grandes multinacionais da morte ainda não aportaram a esta zona rural, porque a clientela não teria dinheiro para pagar as carrinhas de luxo, os bolos sortidos, os livros de condolências encadernados a couro. Há uma mulher caída, a uns oito quilómetros da pacífica animação de Lagar, num mísero pátio de uma das casas mais pobres da aldeia de Arrifes. Como o calor mantém os habitantes recolhidos, a vizinha não veio varrer o alpendre e não chamou por ela. Uma gatita malhada lambe-lhe o rosto, tentando despertá-la. São duas horas da tarde, e a carrinha do Centro de Dia só regressará pelas seis. O miado da gata tem por única resposta a queda de um limão gigante do limoeiro que fica ao canto do pátio, antes das escadas que dão para o telheiro do tanque de lavar a roupa. A mulher caiu perto da porta, longe das duas árvores do quintal, sobre a laje ardente, inundada de sol». In Inês Pedrosa, Desamparo, 2015, Publicações dom Quixote, 2015, ISBN 978-972-205-669-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT