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«Um
silêncio em bruto, como se o torno do mundo não tivesse ainda começado a rodar.
Manchas estáticas de verde, pomares interrompidos por casas brancas, amarelas,
algumas, poucas, com pórticos em ferro lavrado, escadarias flanqueadas por
leões ou jarrões de pedra, dois andares e pátios onde ao fim-de-semana
estacionarão automóveis urbanos. Nem os cães ladram debaixo da canícula. Os
pássaros desistiram de voar. Na aldeia de Arrifes, concelho de Lagar, milenar
dote de princesas e rainhas, nada se move. A carrinha do Centro Social já fez o
seu turno, pelas nove da manhã, com duas mulheres de bata azul, para ajudar os
velhos que vivem sós a levantarem-se, lavarem-se, vestirem-se, dar-lhes o
pequeno-almoço e a medicação e deixar-lhes o almoço. Voltará a meio da tarde
com o jantar. Há outra carrinha que os leva para o Centro de Dia, onde podem
ver televisão, jogar às cartas ou fazer ginástica. A maior parte deles não quer
ir. Dizem que a companhia dos outros velhos os cansa. No parque exterior da
turística vila de Lagar, os autocarros continuam a desaguar rios de
estrangeiros de chinelos e calções. O calor não os incomoda, sentam-se nas
esplanadas a fotografar as muralhas e pedem sangria gelada ou o celebrado licor
local, de pêra-rocha, com muitos cubos de gelo. Portugal visto dali é uma
paisagem medieval com água potável e confortos modernos, povoada por gente
humilde, prestável, dedicada à ciência de ser feliz com pouco. A poucos
quilómetros encontrarão praias selvagens e hotéis rodeados de aprazíveis campos
de golfe. Preferem o sol às chuvas inclementes que por vezes também assolam o
simpático país, definido no início do século XX pelo mais internacional dos
seus poetas como o rosto que a Europa mostra ao mar.
Um
empregado de café diz a um grupo de turistas que têm sorte, luck, very luck,
porque de um calor destes não há memória. Se bem que ele, excepto por motivos
comerciais, até prefira a chuva; o caminho da chuva trouxe-o a Lagar há
exactamente doze anos. Caíra uma ponte no Norte, lá para Trás-os-Montes,
matando cinquenta e nove pessoas que vinham na camioneta da Junta de Freguesia,
regressando de um passeio de domingo às amendoeiras em flor. Joaquim morava
perto dessa aldeola tornada símbolo de tragédia. Como os corpos afundados não
apareciam, e não havia muito que fazer por aquelas bandas, as pessoas começaram
a organizar piqueniques à beira do rio ao fim-de semana, para ver se, entre um
pastel de bacalhau e um copo de tinto, alcançavam a boa acção de detectar um
corpo inchado a boiar, porque não há nada mais triste do que um funeral sem
defuntos. Num desses piqueniques conhecera a sua Conceição, que viera com os
pais visitar uns parentes e tentar a glória de pescar um morto, já que o pai
era bombeiro e especializado em mergulhos. A expedição não teve sucesso, só
vinte e três corpos viriam a ser encontrados, mas Joaquim acabou por vir morar
para Lagar, aprendeu a ler com a ajuda de Conceição, entrou para a escola,
arranjou trabalho no café, casou e tornou-se um homem feliz, pai de um
rapazinho de cinco anos. Pensava muitas vezes que se não fosse aquela
catástrofe estaria ainda a tratar das vinhas e a coser sapatos à noite, longe
dos territórios férteis do turismo. Tudo tem o seu propósito.
As
tragédias individuais não são assinaladas por placas, homenagens, celebrações.
Falta-nos o tempo para as acolher e são demasiado próximas da nossa vida. Todos
os dias morre gente. Na Vila de Lagar a funerária chama-se Zorro, porque é esse
o nome de baptismo do seu proprietário, e está escondida no cotovelo de uma das
sinuosas ruas que circundam a muralha. Não necessita propriamente de
propaganda, os clientes aparecem todos os dias. As grandes multinacionais da
morte ainda não aportaram a esta zona rural, porque a clientela não teria
dinheiro para pagar as carrinhas de luxo, os bolos sortidos, os livros de
condolências encadernados a couro. Há uma mulher caída, a uns oito quilómetros
da pacífica animação de Lagar, num mísero pátio de uma das casas mais pobres da
aldeia de Arrifes. Como o calor mantém os habitantes recolhidos, a vizinha não
veio varrer o alpendre e não chamou por ela. Uma gatita malhada lambe-lhe o
rosto, tentando despertá-la. São duas horas da tarde, e a carrinha do Centro de
Dia só regressará pelas seis. O miado da gata tem por única resposta a queda de
um limão gigante do limoeiro que fica ao canto do pátio, antes das escadas que
dão para o telheiro do tanque de lavar a roupa. A mulher caiu perto da porta,
longe das duas árvores do quintal, sobre a laje ardente, inundada de sol». In
Inês Pedrosa, Desamparo, 2015, Publicações dom Quixote, 2015, ISBN
978-972-205-669-4.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT