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Don Damián se dirigia à catedral de Santa Cruz, do outro lado da estreita língua
de terra em que se assentava a cidade amuralhada fechando a baía. Antes de
entrar numa rua, virou o rosto e entreviu a figura de Caridad à passagem da
multidão: havia-se afastado até dar com as costas num muro onde permanecia
parada, alheia ao mundo. Vai arrumar-se, disse-se forçando o passo e entrando
na rua. Cádiz era uma cidade rica em que podiam encontrar-se comerciantes e
mercadores de toda a Europa e onde o dinheiro corria aos montes. Era uma mulher
livre e portanto tinha de aprender a viver em liberdade e trabalhar. Percorreu
um longo trecho e, quando chegou a um ponto em que as obras da nova catedral,
perto da de Santa Cruz, se divisavam com nitidez, parou. Em que ia a trabalhar
aquela pobre desgraçada? Não sabia fazer nada, além de labutar numa plantação
de tabaco, onde havia vivido desde os dez anos, quando, procedente do reino dos
lucumis, no golfo da Guiné, os mercadores de escravos ingleses a haviam
comprado por cinco míseras varas de tecido para revendê-la no ávido e
necessitado mercado cubano. Assim havia contado o próprio don José Fidalgo ao
capelão quando este se interessou pela razão por que a havia escolhido para a
viagem. É forte e desejável, acrescentou o dono de veiga piscando-lhe um olho. E
ao que parece já não é fértil, o que sempre é uma vantagem uma vez fora da
plantação. Depois de dar à luz aquele menino tonto… Don José lhe havia
explicado também que era viúvo e que tinha um filho graduado que havia estudado
em Madrid, aonde se dirigia para viver seus últimos dias. Em Cuba possuía uma
rentável plantação de tabaco numa veiga perto de Havana que ele mesmo
trabalhava com a ajuda de uma vintena de escravos. A solidão, a velhice e a
pressão dos açucareiros por obter terras para aquela florescente indústria o
haviam levado a vender sua propriedade e voltar à pátria, mas a peste o atacou
aos vinte dias de navegação e se encarniçou com sanha em sua natureza débil e doentia.
A febre, os edemas, a pele manchada e as gengivas sangrantes levaram o médico a
desenganar o paciente. Então, como era obrigatório nas naus do rei, o capitão d’
A Rainha ordenou ao escrivão que fosse ao camarote de don José para dar
fé de suas últimas vontades. Concedo a liberdade à minha escrava Caridad,
sussurrou o enfermo depois de ordenar um par de doações piedosas e de dispor da
totalidade de seus bens em favor daquele filho com que não se reencontraria.
A
mulher nem sequer chegou a curvar seus grossos lábios numa menção de satisfação
ao saber que estava livre, recordou o sacerdote parado na rua. Não falava! Don
Damián recordou seus esforços por ouvir Caridad entre as centenas de vozes que
rezavam nas missas dominicais no convés, ou seus tímidos sussurros nas noites,
antes de deitar-se, quando ele a obrigava a rezar. Em que ia trabalhar aquela
mulher? O capelão era consciente de que quase todos os escravos que obtinham a
liberdade terminavam trabalhando para seus antigos senhores por um mísero salário
com que dificilmente chegavam a cobrir necessidades que antes, como escravos,
tinham garantidas, ou então acabavam condenados a pedir esmola nas ruas,
brigando com milhares de mendigos. E estes haviam nascido na Espanha, conheciam
a terra e sua gente, alguns eram espertos e inteligentes. Como poderia mover-se
Caridad numa cidade grande como Cádiz?
Suspirou
e passou a mão repetidas vezes no queixo e no pouco cabelo que lhe restava.
Depois deu meia-volta, resfolegou ao levantar de novo o baú e, com ele às
costas, se preparou para desfazer o caminho andado. Que fazer agora?,
perguntou-se. Podia… podia intermediar para que trabalhasse na fábrica de
tabaco, disso, sim, ele sabia. É muito boa com as folhas; trata-as com carinho
e delicadeza, como deve fazer-se, e sabe reconhecer as melhores e torcer bons charutos,
havia-lhe dito don José, mas isso significaria pedir favores e que se soubesse
que ele… Não podia arriscar-se a que Caridad contasse o que acontecera na
embarcação. Nos galpões da fábrica trabalhavam cerca de duzentas charuteiras
que não paravam de cochichar e criticar enquanto faziam os pequenos
charutos gaditanos. Encontrou Caridad ainda colada ao muro, parada,
desamparada. Um grupo de pirralhos zombava dela, diante da passividade das
pessoas que continuavam entrando e saindo do porto. Don Damián se aproximou
justo quando um dos garotos se preparava para atirar-lhe uma pedra. Parado!,
gritou.
Um
rapaz deteve seu braço; a jovem se descobriu e baixou o olhar. Caridad se
afastou do grupo de sete passageiros que haviam embarcado na nau que ia
remontar o rio Guadalquivir até Sevilha e, cansada, tentou acomodar-se entre o
monte de volumes dispostos a bordo. A nau era uma tartana de um só mastro e bom
porte que havia arribado a Cádiz com um carregamento do valioso óleo da veiga
sevilhana. Da baía de Cádiz navegaram em cabotagem até Sanlúcar de Barrameda,
onde se encontra a desembocadura do Guadalquivir. Diante das costas de
Chipiona, junto a outras tartanas e charangas, prepararam-se para esperar a préamar
e ventos propícios para superar a perigosa barra de Sanlúcar, os temíveis
baixios que haviam convertido a zona num cemitério de embarcações. Só quando
coincidiam todas as circunstâncias precisas para enfrentar a barra, os capitães
se atreviam a isso. Depois remontariam o rio aproveitando o impulso da maré,
que se deixava sentir até às cercanias de Sevilha. Deu-se o caso de naus que
tiveram de esperar até cem dias para cruzar a barra, dizia um marinheiro que
conversava com um passageiro luxuosamente ataviado, o qual de imediato desviou
um olhar preocupado para Sanlúcar e suas espectaculares marismas, como se
suplicasse que não tivesse a mesma sorte». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça,
2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa,
2014, ISBN 978-972-252-815-3.
Cortesia BertrandE/JDACT