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1754-1758
«(…) Por enquanto, porém, elas correm,
tontas, uma atrás da outra, a sujarem de terra os sapatinhos de seda com laço
de cetim, as bainhas das saias tufadas, a amachucar as rendas onde tudo se
pega, as ervas e as folhas velhas, os cardos, os inesperados picos e farpas das
plantas tardias. E quando a sede as apanha, curvam-se a beber da água que a
cascata ondeia no leito do chão, turvada pela própria luminosidade,
desse modo impedindo que as duas se inclinem a tentarem distinguir melhor a
face uma da outra: as duas afogueadas pela correria e a chama do estio cortada
pelo ar enevoado da serra de Sintra, sem se importarem as meninas com as
lâminas tremeluzentes do calor. Serra onde habitualmente passam com os pais os
dias quentes de Agosto na quinta de verão, em busca do fresco das fontes, da
friagem das nascentes, do arvoredo escuro aqui e ali clareado pelas flores
cor-de-rosa das olaias, pelas rosas-chá das latadas esgarçadas pelos lilases.
Pujança colorida das buganvílias, que subitamente surgem à beira dos carreiros
escusos das matas sombrias. Logo adiante os loureiros e as tílias fazem a
ligação aos jardins da casa, luzeiros inesperados do meio-dia. Estio temperado
pelas nuvens baixas, que a certas horas se afastam para deixarem ver, numa
imprecisão trémula, o Convento da Pena.
Descuidada, Maria prefere as hortênsias de
um azul que lhe parece igual ao céu das estampas religiosas, enquanto Leonor
gosta mais das faias de ramos descidos até à erva ao de leve molhada, formando
uma espécie de campânula de abrigo, onde se recolhe quando lhe apetece ficar
sozinha, perdida nos seus sonhos ou nos livros de gravuras de estrelas,
planetas e globo celeste, álbuns que desfolha com avidez febril; a lidar com
divagações aturdidas que nem ela sabe explicar, e demasiadas vezes lhe trazem
de volta um aperto angustiado no peito liso sob o cabeção de cassa bordada do
vestido, no qual repousa o fio de ouro com uma cruzinha de marfim incrustada em
prata que a avó Leonor Távora lhe trouxe da Índia.
Vamos como sempre à missa na igreja do
Convento de São Domingos, para o lado do Rossio, as patas dos cavalos
derrapando nas descidas das ruas íngremes, em direcção ao Tejo onde o olhar se
detém, a tentar distinguir ao longe as naus, os bergantins e as faluas. Mal
saímos da carruagem, a minha avó Leonor Távora, sempre impaciente, começa a
puxar-me pelo pulso tentando apressar-me o caminhar miúdo, sapatinho prendendo
na calçada enquanto vou arrastando o passo, luva apertada no punho por um minúsculo
botão encoberto pela ponta da manga do vestido de tafetá verde-amêndoa. Andar
retardado na ida, atrasando-me o que posso distraída com as gaivotas que por
instantes parecem planar, soltando a fina lâmina do seu grito. Gaivotas em
terra é sinal de tempestade, diz dona Brites, e fico a imaginar,
esquecida de tudo o resto, esse voo misturado de nuvens, como se pudesse soltar
a mão dos dedos da minha avó e subir no ar, voando cada vez mais alto. Minha mãe
que segue atrás, mão dada a Maria, endireita-me a touca de renda e ajeita-me a
capa cinzenta escura posta sobre os ombros, descaindo um tudo-nada no começo
dos braços. O sol, ao atravessar a fazenda de lã chegada de Inglaterra,
molda-se ao meu corpo a emprestar-me um calor bom, cortado mal entro na sombra
da nave central da igreja, tão densa que cuido ficar cega. E sem nada ver,
tropeço ora num degrau ora num genuflexório, presa já do medo que escondo mas
sempre sinto perto das imagens dos santos. A fitarem-me com o seu falso olhar
de apaziguamento de madeira, de gesso ou terracota, desvendando-me os pecados e
as faltas, para de seguida me colocarem diante do inevitável julgamento, sem
perdão possível.
Então, de repente tudo se esvazia, perco a
noção da realidade e deixo-me levar pelo pavor absoluto, no centro do qual se
encontra a culpa e o sofrimento, representado este pela figura da Nossa Senhora
das Dores amparando nas mãos entreabertas em concha o seu coração trespassado
de setas, lágrimas nacaradas descendo pela pálida face amarelecida pelos anos. Fico
a olhá-la durante largo tempo mas, desassossegada, deslizo da cadeira forrada
de veludo e faço o inesperado: avanço e deslizo sozinha para dentro da
escuridade húmida, entrecortada pela luz vacilante dos círios nos pesados
candelabros de bronze. O pavor empurra-me para diante, leva-me a tactear à
volta enquanto finjo ignorar as pessoas que oram ajoelhadas. Até que chego
nauseada de medo ao fundo da nave, onde descubro horrorizada o Senhor dos
Passos, mais do dobro do meu tamanho: um joelho em terra e outro levantado,
vestes roxas e sujas arrastando-se numa poeira imaginária, cruz a escorregar
das costas que curvadas a carregam, tendo na cabeça inclinada a coroa de
espinhos cravada na carne sofrida, de onde escorrem gotas de sangue semelhantes
a rubis.
Sem conseguir impedir-me, espreito por
entre as pálpebras até lhe encontrar o olhar parado, onde descortino a
cintilação do aço, numa aterradora ameaça de castigo. Certa de não poder tornar
a afastar-me daquele sítio de trevas, onde se vem misturar o odor adocicado a
incenso e a flores fanadas, tento aflita suster o grito prestes a soltar-se por
entre os lábios entreabertos. Leonor!, sussurra minha avó, atraindo-me a si e
apertando-me ao peito, ciente do meu susto. E sem nenhumas perguntas regressa
comigo à cadeira onde me abriga junto à sua anca, emprestando-me o terço de
grandes contas de ouro que vou enrolando e desenrolando, sem saber rezar. Ao
fundo da igreja ficaram os homens, chapéus nas mãos cruzadas atrás das costas.
Viro-me, ansiando por distinguir entre eles o senhor meu Pai, que logo descubro garboso na sua casaca azul-cobalto,
colete branco de abas, camisa de cambraia com punhos de folhos bordados. Menina!,
torna minha avó Leonor Távora, desta vez com uma ponta de ralho na voz de
cetim. Fingindo uma obediência que não tenho nem uso, volto-me para a frente
enquanto penso: vou fechar os olhos e já sonho». In Maria
Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D.
Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
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