sábado, 24 de dezembro de 2016

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «Sem conseguir impedir-me, espreito por entre as pálpebras até lhe encontrar o olhar parado, onde descortino a cintilação do aço, numa aterradora ameaça de castigo. Certa de não poder tornar a afastar-me daquele sítio de trevas»

jdact

1754-1758
«(…) Por enquanto, porém, elas correm, tontas, uma atrás da outra, a sujarem de terra os sapatinhos de seda com laço de cetim, as bainhas das saias tufadas, a amachucar as rendas onde tudo se pega, as ervas e as folhas velhas, os cardos, os inesperados picos e farpas das plantas tardias. E quando a sede as apanha, curvam-se a beber da água que a cascata ondeia no leito do chão, turvada pela própria luminosidade, desse modo impedindo que as duas se inclinem a tentarem distinguir melhor a face uma da outra: as duas afogueadas pela correria e a chama do estio cortada pelo ar enevoado da serra de Sintra, sem se importarem as meninas com as lâminas tremeluzentes do calor. Serra onde habitualmente passam com os pais os dias quentes de Agosto na quinta de verão, em busca do fresco das fontes, da friagem das nascentes, do arvoredo escuro aqui e ali clareado pelas flores cor-de-rosa das olaias, pelas rosas-chá das latadas esgarçadas pelos lilases. Pujança colorida das buganvílias, que subitamente surgem à beira dos carreiros escusos das matas sombrias. Logo adiante os loureiros e as tílias fazem a ligação aos jardins da casa, luzeiros inesperados do meio-dia. Estio temperado pelas nuvens baixas, que a certas horas se afastam para deixarem ver, numa imprecisão trémula, o Convento da Pena.
Descuidada, Maria prefere as hortênsias de um azul que lhe parece igual ao céu das estampas religiosas, enquanto Leonor gosta mais das faias de ramos descidos até à erva ao de leve molhada, formando uma espécie de campânula de abrigo, onde se recolhe quando lhe apetece ficar sozinha, perdida nos seus sonhos ou nos livros de gravuras de estrelas, planetas e globo celeste, álbuns que desfolha com avidez febril; a lidar com divagações aturdidas que nem ela sabe explicar, e demasiadas vezes lhe trazem de volta um aperto angustiado no peito liso sob o cabeção de cassa bordada do vestido, no qual repousa o fio de ouro com uma cruzinha de marfim incrustada em prata que a avó Leonor Távora lhe trouxe da Índia.
Vamos como sempre à missa na igreja do Convento de São Domingos, para o lado do Rossio, as patas dos cavalos derrapando nas descidas das ruas íngremes, em direcção ao Tejo onde o olhar se detém, a tentar distinguir ao longe as naus, os bergantins e as faluas. Mal saímos da carruagem, a minha avó Leonor Távora, sempre impaciente, começa a puxar-me pelo pulso tentando apressar-me o caminhar miúdo, sapatinho prendendo na calçada enquanto vou arrastando o passo, luva apertada no punho por um minúsculo botão encoberto pela ponta da manga do vestido de tafetá verde-amêndoa. Andar retardado na ida, atrasando-me o que posso distraída com as gaivotas que por instantes parecem planar, soltando a fina lâmina do seu grito. Gaivotas em terra é sinal de tempestade, diz dona Brites, e fico a imaginar, esquecida de tudo o resto, esse voo misturado de nuvens, como se pudesse soltar a mão dos dedos da minha avó e subir no ar, voando cada vez mais alto. Minha mãe que segue atrás, mão dada a Maria, endireita-me a touca de renda e ajeita-me a capa cinzenta escura posta sobre os ombros, descaindo um tudo-nada no começo dos braços. O sol, ao atravessar a fazenda de lã chegada de Inglaterra, molda-se ao meu corpo a emprestar-me um calor bom, cortado mal entro na sombra da nave central da igreja, tão densa que cuido ficar cega. E sem nada ver, tropeço ora num degrau ora num genuflexório, presa já do medo que escondo mas sempre sinto perto das imagens dos santos. A fitarem-me com o seu falso olhar de apaziguamento de madeira, de gesso ou terracota, desvendando-me os pecados e as faltas, para de seguida me colocarem diante do inevitável julgamento, sem perdão possível.
Então, de repente tudo se esvazia, perco a noção da realidade e deixo-me levar pelo pavor absoluto, no centro do qual se encontra a culpa e o sofrimento, representado este pela figura da Nossa Senhora das Dores amparando nas mãos entreabertas em concha o seu coração trespassado de setas, lágrimas nacaradas descendo pela pálida face amarelecida pelos anos. Fico a olhá-la durante largo tempo mas, desassossegada, deslizo da cadeira forrada de veludo e faço o inesperado: avanço e deslizo sozinha para dentro da escuridade húmida, entrecortada pela luz vacilante dos círios nos pesados candelabros de bronze. O pavor empurra-me para diante, leva-me a tactear à volta enquanto finjo ignorar as pessoas que oram ajoelhadas. Até que chego nauseada de medo ao fundo da nave, onde descubro horrorizada o Senhor dos Passos, mais do dobro do meu tamanho: um joelho em terra e outro levantado, vestes roxas e sujas arrastando-se numa poeira imaginária, cruz a escorregar das costas que curvadas a carregam, tendo na cabeça inclinada a coroa de espinhos cravada na carne sofrida, de onde escorrem gotas de sangue semelhantes a rubis.
Sem conseguir impedir-me, espreito por entre as pálpebras até lhe encontrar o olhar parado, onde descortino a cintilação do aço, numa aterradora ameaça de castigo. Certa de não poder tornar a afastar-me daquele sítio de trevas, onde se vem misturar o odor adocicado a incenso e a flores fanadas, tento aflita suster o grito prestes a soltar-se por entre os lábios entreabertos. Leonor!, sussurra minha avó, atraindo-me a si e apertando-me ao peito, ciente do meu susto. E sem nenhumas perguntas regressa comigo à cadeira onde me abriga junto à sua anca, emprestando-me o terço de grandes contas de ouro que vou enrolando e desenrolando, sem saber rezar. Ao fundo da igreja ficaram os homens, chapéus nas mãos cruzadas atrás das costas. Viro-me, ansiando por distinguir entre eles o senhor meu Pai, que logo descubro garboso na sua casaca azul-cobalto, colete branco de abas, camisa de cambraia com punhos de folhos bordados. Menina!, torna minha avó Leonor Távora, desta vez com uma ponta de ralho na voz de cetim. Fingindo uma obediência que não tenho nem uso, volto-me para a frente enquanto penso: vou fechar os olhos e já sonho». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT