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Carta II
«(…) A Vida é feita de lodo e os homens do pó do
crime. Tudo é lama e toda a lama é igual. A que salpica uma toilette de
seda e a que traça constelações nos trapos das mendigas. As almas são de lama,
as rosas são de lama, os lírios são de lama, como as estrelas, como as hóstias,
como os mortos, como os vivos. Há a lama vestida de pérolas e a vestida de
escrófulas, a lama toucada de sedas e cetins e a vestida de crostas e farrapos.
Mas é tudo a mesma impureza, tudo a mesma podridão. Tão impuras são as vestes de
Messalina como a escova de dentes de Gautier, as ligas de Agripina como a cama
de Rigolbeche, e tudo isto como o manto da Imaculada Conceição. A diferença que
vai daquele bandalho, que passa de chapéu alto, àquele malandro, que pisca os
olhos e pede esmola, não é nenhuma. Pura convenção. Se tu fosses buscar uma rameira
de hospital e a toucasses de sedas ela arranjaria coorte. Viriam a seus pés os
famintos, as rascoas, os interesseiros, os honrados, os banqueiros, o mundo
todo. Que me importa que a imagem desta libra seja a de uma rainha ou a de uma
prostituta se com ela eu posso compra-las ambas? Tudo é dor. A dor é igual.
Senti-la maior ou menor é diferença dos nervos que a sentem, como a grandeza
dos que a vêem. A dor é egoísta como o mundo. A dor da mãe que perdeu o filho é
egoísta. São os lamentos pela felicidade que perdeu. Como a da águia a quem
roubaram os ovos, como a do avaro a quem roubaram um dobrão, como a da Virgem a
quem roubaram Jesus. Tu já leste Os Homens do Mar, de Vítor Hugo?
Recordas-te da pieuvre? A dor é a pieuvre. Enlaça os corpos, as
almas, suga-as, bebe-as em vida. A alguns deixa apenas o esqueleto.
A águia que rói os fígados a Prometeu não é outra
senão a Dor. Bendita seja a Dor que tiraniza e leva ao crime. Tudo é mentira,
tudo ilusão. Quem sabe lá quanta podridão levedou para dar uma rosa, para abrir
um malmequer, e para florir uma chaga? Que as chagas o que são senão rubras e
esquisitas flores? Abre um crânio e vê se distingues a alma de Dante da alma de
Caim, a de Inocêncio III da do galego da esquina. Quem distinguirá lá em baixo
no ventre da terra a carne de Impéria da carne de Chénier, a ossada de Gilbert
da ossada de Ravachol? O rosto que ri não é o mesmo que chora? A boca que canta
e ri não é a mesma que ameaça e insulta, que suspira, que geme e que reza? Os
olhos que vêem Deus e o Diabo? As almas não servem a ambos, atraiçoando ambos? Vê
quanto pus encerra esta palavra: Amor! Tu crês no Amor? Na Amizade? No teu semelhante?
É preferível ver um cano de esgoto em toda a sua porcaria a uma alma em toda a
sua intimidade. Há almas cuja treva é maior que a noite, consciências cuja lama
é maior que a de todos os pântanos da terra.
Cada homem dissimula em si um trágico carnaval.
Murger disse algures que a Vida era uma máscara de forçados. E se pudesses
fazer cair a máscara que cada um afivela recuarias de terror. À face da terra o
homem não tem feito senão mal. Foi ele quem inventou os tronos e os altares,
que fez a Verdade e a Mentira. Que inventou o canalha que governa e o que sofre
a sua até morrer, que inventou a guilhotina e a glória, o deboche e o dinheiro.
Sobre cada ventre pesa uma maldição, sobre cada berço pesa uma agonia. Há mães
que à hora da morte amaldiçoam a sua obra. Benditos os que amaldiçoam. O ventre
das mães é o embrião do crime. Barregãs que o desejo ensandeceu deviam ser rompidas
pelo ventre como o Senhor prometeu às emprenhadas dos povos pecadores. Que maldito
seja o ventre de todas as mães. Filhos fecundados em plena bebedeira, que
bateis nas mães, que cuspis em Deus, que quebrais os santos e rasgais as
páginas balofas dos missais, vede se na morte não sois iguais aos justos, se
todos não são iguais na morte. Benditos sejam os matricidas, benditos sejam os
homicidas, os perversos, os malditos. Bendito seja Orestes que violou a mãe,
Amon que desflorou a irmã, Myrra que teve incesto com o pai. Benditas sejam as
mães que matam os filhos, o irmão que mata o irmão, o canalha que mata o
canalha.
Benditos os que matam porque eles semeiam a
felicidade. Há caveiras que riem bêbadas de riso, outras que cerram os dentes
de uma grande raiva. Nunca reparaste? Enchi-te de desolação e abandono. Que eu
exagero? Mas isto ainda é pouco. A torpeza da vida não caberia em mil volumes
como este. Que eu exagero?! Que eu exagero?! Patife, tu bem sabes que eu digo a
verdade. Já viste quanto cómico há na vida trágica e quanto trágico há na vida
cómica? Há risos que são mais tristes que a tocha de um gato pingado, lágrimas
que por mais que se queira fazem sempre soltar gargalhadas. As lágrimas
choradas e que a terra tem bebido há 6.000 anos que o mundo é mundo davam um
novo dilúvio capaz de afogar o mundo todo. A luz do sol tem visto mais
podridões que o mármore de uma casa de autópsias. O que é a vida? Não sei. Eu
tenho visto nela muita torpeza e muita lama. Sê mau, ouves? Sê mau. Tens que
ser mau que a terra vive do mal. Às vezes sinto-me fatigado de só o ter sido
mediocremente. Ah, eu nunca poderei vir a ser um Nero! E Nero que incendiou
Roma não é bem maior do que São Francisco de Assis? Incendiar uma cidade é bom,
mas incendiar o mundo? Incendiar o mundo, ó gentes? Que grande obra para um
caricaturista! A lama a não querer morrer, a fugir do braseiro...» In Albino Forjaz Sampaio, Palavras
Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira, Wikipédia, 2011, Editora Guerra e
Paz, ISBN 978-989-702-000-1.
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