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Anno
Domini MMVI
«(…)
Para Sarah Monteiro, nada se equipara à cidade metropolitana de Londres, que
agora sobrevoa de volta à sua casa em Belgrave Road. O avião vem de Portugal,
Lisboa, e lança-se à pista em infindáveis manobras há cerca de meia hora. Mas,
para Sarah Monteiro, tudo aquilo era um prazer, depois de quinze dias de férias
na casa dos pais, um capitão do exército e uma professora inglesa; daí o
"h" que acompanha o belo nome Sara, influência da origem britânica
materna, bem como do gosto por tudo que é britânico. Não que não goste de
Portugal, longe disso: é um país lindo e fantástico, mas com longo caminho a
trilhar em termos de personalidade. Apesar da idade avançada de suas
fronteiras, as revoluções foram muitas e as renovações, poucas. À parte tudo
isso, para Sarah, Portugal é paragem obrigatória, duas a três vezes ao ano,
mais os natais, pois os pais fixaram residência no Alentejo, numa área rural
perto de Beja, e respirar aquele ar do campo, muito diferente do da capital
britânica, é algo sem o qual já não consegue viver. O avião aterra de maneira
suave, embora a mais suave das aterragens carregue sempre uma dose de solavancos
e sacudidelas. Apesar do longo caminho até a área de desembarque, uns bons
vinte minutos, todos se levantam e se acotovelam para serem os primeiros a
pegar as bagagens de mão e a sair do avião. Acabamos de aterrar no aeroporto de
Heathrow. São seis e meia da tarde, mesmo horário de Lisboa. Na capital
britânica faz vinte e um graus centígrados. Permaneçam sentados e com os cintos
apertados até a parada
total da aeronave. Obrigado por voarem pela nossa Companhia, declara a hospedeira
de bordo, mas quem lhe presta atenção? Apenas duas ou três pessoas, Sarah entre
elas, que está acostumada ao entra-e-sai de aviões, se não para ir a Portugal
ver os pais, para outros destinos, outras capitais e cidades; ossos do ofício
de uma correspondente de vários jornais e emissoras da Europa, em Londres. Facto
interessante os estrangeiros lhe pagarem para dar notícias da sua cidade. Tem
mais dois dias de férias antes de voltar às redacções, ao corre-corre da
notícia, à busca incessante por algo bombástico, sangrento, anómalo.
Agora, sim,
o avião parou, e os passageiros se apressam a sair pela porta da frente. É hora
de pegar seu notebook e sua valise e sair. Pelo caminho, liga
para os pais e diz que chegou bem; mais tarde falarão pela internet,
quando chegar em casa. Percorre os longos corredores em verde e preto e
coloca-se na fila da imigração. São os procedimentos legais que cada terra
soberana inventa para si mesma; porém todos acabam se entendendo, ou não seriam
as viagens possíveis para lado nenhum, por fecharem as portas uns aos outros, o
que às vezes acontece. Cidadãos da União Europeia, da Suíça e dos Estados
Unidos para um lado, cidadãos de outras nacionalidades para outro, todos com o
passaporte na mão. Sarah é a próxima e aguarda junto à linha amarela, para não
invadir o espaço do senhor de óculos que está à frente ou para não confundir o
funcionário sentado atrás de um balcão. Next, please. O próximo, por
favor. A expressão no semblante do homem é de poucos amigos; bem podia ter
escolhido outro guichê; a funcionária ao lado parece bem mais simpática, o
sorriso não engana, mas o que está feito, está feito. Estende-lhe o passaporte
e oferece-lhe seu melhor sorriso. É bom estar de volta. Como tem estado o tempo?, Pergunta
circunstancial, apenas para iniciar conversa. Não consigo vê-lo daqui, responde o homem. Não acordou
bem, com certeza, ou a desavença com a patroa, se é que existe, foi feia. Caso
contrário, o problema dele é a falta de patroa, facto por que o mau humor deve
ser constante. Há alguma coisa errada com o seu passaporte. Desculpe? Como
assim? Um problema com o passaporte? Podia mostrar a identidade... Mas nunca
dera problema, então por que razão daria agora? Porcaria de computadores! O
telefone do guichê toca, e o funcionário mal-encarado atende. Horatio, o nome
do funcionário, a julgar pelo crachá de identificação cravado no casaco, ouve o
interlocutor. Sim, mas o passaporte não passa. Volta a ouvir e depois desliga o
telefone. Agora está tudo bem. Pode passar. Obrigada.
Estranho, o
infeliz do homem mexeu mesmo com seus nervos; agora só falta encontrar um
taxista do mesmo tipo para a noite acabar bem. Ainda faltava ir buscar a mala,
mais uma hora, isso se não houvesse extravios. Na sala de comando central, em algum
lugar dentro do aeroporto, um computador dá um alarme. O funcionário, um jovem
na casa dos vinte, para sermos precisos teríamos de lhe perguntar, coisa que
não parece de bom-tom, tendo em vista que se encontra pronto para responder a
um alarme que começou a piscar no computador. O pão nosso de cada dia, nesse
caso, o pão dele, são coisas que estão sempre acontecendo. O jovem está vestido
com camisa branca e calça preta; o volume dos ombros o denuncia como um agente
da polícia que está neste momento descobrindo a origem do alarme que ainda
pisca, vermelho. Foi um passaporte que o accionou, possivelmente adulterado ou
inválido, ou caducado. Ele observa a câmera de segurança: uma mulher bonita, na casa dos trinta, está
em frente ao guichê número onze, o de Horatio, um viúvo chato, embora
escrupuloso; nada passará por ele se não estiver bem. Portanto, o que o jovem
tem a fazer é anular o alarme e deixar o funcionário fazer o resto. Mas o procedimento
de cancelamento do aviso não funciona. Isso nunca lhe havia acontecido. O
melhor é chamar o superior. Senhor? Um homem de cabelos grisalhos, na faixa dos
cinquenta anos, aproxima-se dele e inclina-se sobre o computador. Sim, John. Chama-se
John o nosso jovem. Nunca poderíamos ter adivinhado nome tão corriqueiro. Não
consigo desligar esse alarme e não entendo por quê. Deixe-me ver. O homem vê os
dados que aparecem no computador e tecla algo nele, o que faz aparecer algumas
informações, como o nome de Sarah Monteiro e alguns dados que passam muito
depressa. Não se preocupe, John. Tratarei disso. O homem dirige-se ao telefone
e o pega. Olá, Horatio, é o Steve. Deixe-a entrar. Sim, não se preocupe,
deixe-a entrar, está tudo sob controle. Coloca o dedo no botão que cessa a
chamada e, sem pousar o telefone, faz outra. Ela acaba de chegar». In
Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN
978-972-883-969-7.
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