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Na escuridão semi-iluminada pelo luar não conseguia ver-lhe claramente as costas,
nem mesmo os ombros. Grande parte dele estava perdida sob o lençol. Era nas suas
costas que residia a maior surpresa. O pai dele havia sido uma criatura com asas
de borboleta não pertencera aos Sidhe, mas não deixara de ser um ser feérico. A
genética havia-lhe delineado asas nas costas, como se fosse uma tatuagem
gigante, à excepção de serem mais vividas, mais vivas do que qualquer tinta o poderia
fazer. Uma explosão de cores começava na parte superior dos seus ombros, percorria-lhe
as costas, passava pelas nádegas, fluía sobre as ancas e ia tocar-lhe na parte de
trás dos joelhos: castanho muito claro, castanhos-amarelados, círculos de azul cor-de-rosa
e preto como ocelos nas asas de uma traça. Estava deitado na escuridão de tal
modo esvaziada de qualquer cor que ele e Rhys eram como duas sombras embrulhadas
na cama, uma pálida, outra escura, apesar de haver coisas mais escuras ainda do
que Nicca, muito mais escuras.
A
porta do quarto abriu-se sem qualquer ruído e, como se eu o tivesse invocado, Doyle
entrou lentamente no quarto. Fechou a porta por trás dele tão silenciosamente como
quando a abrira. Nunca entendi como é que ele fazia aquilo. Se tivesse sido eu a
abrir a porta, teria feito barulho. Mas quando Doyle queria, movia-se como o próprio
cair da noite: silencioso, leve, imperceptível até nos apercebermos que
apagaram a luz e que estamos sozinhos no escuro com algo que não conseguimos ver.
A alcunha dele era o Negrume da Rainha, ou simplesmente Negrume. A rainha
diria: onde está o meu Negrume? Tragam-me o meu Negrume!, o que significava
que, em breve, seria derramado o sangue de alguém ou que alguém morreria. Mas
agora, estranhamente, ele era o meu Negrume.
Nicca
era castanho, todavia, Doyle era preto. Não era preto como a cor preta da pele humana,
mas da absoluta escuridão de um céu à meia-noite. Ele não desapareceu no quarto
obscuro, porque era mais escuro do que as sombras iluminadas pelo luar. Era uma
forma sombria que deslizava na minha direcção. Os jeans e a t-shirt pretos dele
serviam-lhe como uma segunda pele. Nunca o vira usar qualquer coisa que não fosse
monocromática, excepto as jóias e as espadas. Até o coldre de ombro e a arma dele
eram pretos. Afastei-me da janela para me colocar de pé, à medida que ele se aproximava
de mim. Teve de interromper o seu movimento deslizante quando chegou à cama king-size,
visto mal haver espaço onde se pudesse comprimir entre a cama e as portas do armário.
A visão de Doyle a deslizar ao longo da parede sem tocar na cama era simplesmente
impressionante. Ele era trinta centímetros mais alto do que eu e, provavelmente,
era quarenta e cinco quilos mais pesado do que eu, maioritariamente compostos por
músculo. Eu teria batido contra a cama uma dúzia de vezes, no mínimo. Ele passou
facilmente por aquele espaço estreito como se qualquer outra pessoa devesse ser
capaz de o fazer.
A cama
ocupava grande parte do quarto, por isso, quando Doyle finalmente me alcançou, fomos
obrigados a ficar de pé, quase encostados um ao outro. Ele conseguiu manter um pequeno
espaço de intervalo entre nós com o intuito de nem mesmo as nossas roupas se roçarem.
Era uma distância artificial. Teria sido mais natural se nos tocássemos, e só o
facto de ele se esforçar tanto por não o fazer levou a que se tornasse algo
ainda mais embaraçoso. Era algo que me incomodava, contudo, desistira de discutir
com Doyle acerca do seu afastamento. Quando o questionava quanto ao assunto, ele
apenas respondia: quero que me veja como alguém especial, não quero ser somente
mais um entre a ralé. No início, parecera-me uma atitude nobre, mas agora era meramente
irritante. Aqui, junto à janela, a iluminação era mais forte, o que me permitia
ver parte da curva delicada das suas elevadas maçãs do rosto, o queixo
demasiado afiado, as zonas curvas das suas orelhas e o brilho prateado dos brincos
que lhe delineavam a cartilagem até às pequenas argolas situadas exactamente no
topo pontiagudo.
Só as
orelhas pontiagudas denunciavam que ele era mestiço, como eu própria, como
Nicca. Podia esconder as orelhas com todo aquele cabelo, mas quase nunca o fazia.
O seu cabelo escuro como breu estava penteado como de costume: com uma trança
bem apertada que fazia com que o seu cabelo, visto de frente, parecesse ser bastante
curto. A ponta da trança, porém, chegava-lhe aos tornozelos. Ele sussurrou: ouvi
qualquer coisa, a voz dele soava sempre num tom baixo e sombrio, como um licor adocicado
para o ouvido e não para o paladar. Ergui o olhar para ele. Qualquer coisa ou eu
a andar por aqui? Os seus lábios contorceram-se, era a expressão mais próxima que
ele normalmente tinha de um sorriso. A Meredith. Abanei a cabeça, de braços
cruzados. Ter dois guardas na minha cama não é protecção suficiente?, sussurrei
de volta. São bons homens, mas não são como eu. Franzi-lhe o sobrolho. Estás a dizer
que não confias em mais ninguém além de ti para me manter a salvo?, as nossas vozes
soavam num tom calmo, praticamente pacífico, tal como as vozes de pais preocupados
em não acordar os filhos adormecidos. Era reconfortante saber que Doyle estava tão
alerta. De entre todos os Sidhe, ele era um dos melhores guerreiros. Era bom tê-lo
do meu lado». In Laurell Hamilton, Carícias da Noite, 2003, Edições Saída de
Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-493-8.
Cortesia
de ESdeEmergência/JDACT