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Das Experiências de Além Mundo ao Supra-real
«(…) Depois de tecer
algumas considerações sobre o sonho, de permeio com outras sobre a realidade e
a consciência acordada, que com o sonho contrasta, Breton tem a seguinte
exclamação: Creio na resolução futura destes dois estados, na aparência tão
contraditórios, que são o sonha e a realidade, numa espécie de realidade absoluta,
de surrealidade, se assim se pode dizer. Espantoso, não posso deixar de
exclamar! Antes mesmo de falar de surrealismo Breton fala de surrealidade, quid
do surrealismo. E que diz ele? Que a surrealidade é uma realidade absoluta, que
resulta da conciliação entre a realidade sensível, da primeira consciência, e o
sonho, que é a realidade, mesmo que disfarçada ou travestida, da segunda
consciência. Novalis falou dum real absoluto e Frederico Schlegel dum real
autêntico por contaste com o real sensível. Como não ver essa espécie de realidade
absoluta de que fala Breton, resultante da conciliação entre a realidade dos
sentidos e o sonho, como o real absoluto de Novalis, de resto citado no texto
de 1924 a partir do paralelismo, mas não da homologia, entre séries ideais de
acontecimentos e séries reais. E já agora como não ligar, ao menos por um
cordão de luz, essa surrealidade ao mundo das ideias platónicas e à topografia do
extra-mundo, com um litoral próximo e bem demarcado e um oceano distante e
indefinível, tal como a regista um platónico como Sohravardi? A coincidência não
deixa dúvida, para insistir nela. Ainda assim paga a pena acrescentar que a
surrealidade está referida ao surreal e que este se entende como supra-real,
quer dizer, como além munda, tal o encontrei nas experiências do sujeito lírico
de Teixeira de Pascoaes no livro Sombras.
Sombras, noto agora?
Sim, espera do entardecer do dia, anseio crepuscular, e exaltação febril da
noite escura pelo autor que pouco depois, no seguimento deste livro de 1907,
escreverá Senhora da Noite (1909). Quer ver um exemplo desta exaltacão?
Pois aí tem o poema Sombra de Deus: noite maravilhosa que, em seu
ventre, dilatado, sentia germinar um braseiro de sóis, donde saíam, como
extintas faúlhas a voar, grandes lágrimas de água e terra escura. […] Ó
noite imensa feita de sóis, de pedras, de alvoradas! Ó noite criadora! Ó noite
escura! Ó tenebrosa mãe de Satanás! […]
A noite apaga a realidade
sensível e revela o além-mundo, o supra-real, o real autêntico e absoluto; a
noite é o lugar de origem, um mundo de anti-matéria, de vazios, de incandescências
solares. Experiências de além-mundo, experiências de surrealidade só de noite
se experimentam. Sem essa câmara escura, exterior ou interior, impossível
contemplar as estrelas ou as ideias. As viagens ao supra-rea1 são nocturnas, quer
dizer, a resolução da oposição entre a realidade sensível e o sonho necessita
dum estado crepuscular, translúcido, em que as tinturas profundas da noite se
misturem ao brilho opaco e esmaltado do dia. Vejo agora que esta resolução a favor
dessa nova realidade absoluta que é o supra-real tem tradução em linguagem
freudiana. Assim: resolver a oposição entre o sensível e o sonho imaterial,
chegar ao estado translúcido crepuscular, é permitir e incentivar o pacto e a
ponte entre as duas consciências. É a mascarada dos símbolos a invadir a primeira
consciência, a poesia a tomar cona da lógica do real,
a noite a beber o dia». In
António Cândido Franco, Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal,
Lisboa, Peniche, Évora, Editora Licorne, 2012, ISBN 978-972-8661-90-8.
Cortesia de
Licorne/JDACT