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«A coragem que vence o medo
tem mais elementos de grandeza que aquela que o não tem. Uma começa interiormente;
outra é puramente exterior. A última faz frente ao perigo; a primeira faz
frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro da sua alma». In Fernando Pessoa
«(…) Porém,
foi um outro jornalista, aliás galego e de passagem, como a galegos acontece
tantas vezes, quem lançou a pergunta que ainda faltava fazer, Para onde vai
esta água. Era então o tempo em que discutiam, com ciência brusca e seca, os
geólogos de ambas as partes, e a pergunta, como de criança tímida, apenas foi
ouvida por quem agora a regista. Sendo a voz galega, portanto discreta e
medida, abafaram-na o rapto gaulês e o rompante castelhano, mas depois outros
vieram repetir o dito arrogando-se vaidades de primeiro descobridor, aos povos
pequenos ninguém dá ouvidos, não é mania da perseguição, mas histórica
evidência. A discussão dos sábios tornara-se quase impenetrável para
entendimentos leigos, mas, ainda assim, podia-se ver que havia duas teses centrais
em discussão, a dos monoglacialistas e a dos poliglacialistas, ambas irredutíveis,
e não tarda inimigas, como duas religiões antitéticas, monoteísta uma,
politeísta outra. Algumas declarações chegavam a parecer interessantes, como
aquela de as deformações, certas deformações, poderem ser devidas, quer a uma
elevação tectónica quer a uma compensação isostática da erosão. Tanto mais,
acrescentava-se, que o exame das formas actuais da cordilheira permite afirmar
que ela não é antiga, geologicamente falando, claro.
Tudo isto,
provavelmente, teria que ver com a fenda. Afinal, uma montanha sujeita a tais
jogos de tracção e braço-de-ferro, não admira que lá venha o dia em que se veja
obrigada a ceder, a partir-se, a desmoronar-se, ou, como no caso vertente, a
abrir racha. Não foi esse o caso da laje grande, inerte sobre os Montes
Alberes, mas a essa nunca a viram geólogos, estava longe, num desolado ermo,
ninguém se aproximou dela, o cão Ardent foi atrás do coelho e não voltou. Passados
dois dias, estavam os membros da comissão de limites fronteiriços em trabalho
de campo, com os teodolitos medindo, com as tábuas conferindo, com as
calculadoras calculando, e a tudo isto confrontando com as fotografias aéreas,
os franceses pouco satisfeitos porque já eram mínimas as dúvidas de que a fenda
fosse espanhola, como o jornalista Miguel pioneiramente defendera, quando houve
súbita notícia duma nova fractura. Da tranquila Orbaiceta não voltou a falar-se,
nem do cortado rio Irati, sic transit gloria mundi e de Navarra. Em revoada, os
homens da informação, alguns dos quais eram mulheres, foram enxamear os
Pirenéus Orientais, que era a região crítica, felizmente dotada de melhores
meios de acesso, tantos e tão excelentes que em poucas horas ali se reuniu o
poder do mundo, com gente que até de Toulouse e Barcelona viera. As auto-estradas
ficaram entupidas, quando as polícias de um lado e do outro quiseram desviar os
fluxos de trânsito era tarde de mais, quilómetros e quilómetros de automóveis,
o caos mecânico, depois foi preciso aplicar providências drásticas, fazer
voltar toda a gente para trás pela outra faixa de rodagem e para isso
destruindo as vedações, enchendo os fossos, um inferno, razão tiveram-na os
gregos quando nesta região o colocaram. Valeram na emergência os helicópteros,
esses artefactos voadores ou passarolas capazes de pousar em quase todos os
lugares, e, quando de todo impossível, procedem à imitação do colibri,
aproximam-se quase a tocar a flor, os passageiros nem precisam de escada, um
saltinho e basta, entram logo na corola, entre estames e pistilos, aspirando os
aromas, quantas vezes de napalm e carne queimada. Largam a correr, baixando a cabeça,
e vão ver o que aconteceu, alguns destes chegam directamente do Irati, já com
experiência tectónica, mas não esta.
A fenda corta a estrada.
toda a grande área de estacionamento, e prolonga-se. adelgaçando-se para os
dois lados. Na direcção do vale. onde se perde, serpenteando pela encosta do
monte acima, até desaparecer nos matos. Estamos no exacto e preciso lugar da
fronteira, a autêntica, a linha de separação, neste limbo sem pátria entre os
postos das duas polícias, la aduana e la douane, la bandera e le drapeau. A uma
distância prudente, porque se admite a probabilidade de desmoronamentos dos
bordos da terrestre ferida. Autoridades e técnicos trocam frases de nulo
sentido e eficácia nula, não se pode chamar diálogo a tal rumor de vozes, e usam
altifalantes para melhor se ouvirem, enquanto outras personagens mais
qualificadas, dentro dos pavilhões, falam pelo telefone, ora entre si, ora com
Madrid e Paris. Mal desembarcaram, os jornalistas vão indagar como foi que isto
se deu, e recolhem todos a mesma história, com algumas elaboradas variantes,
que a sua própria imaginação ainda mais irá enriquecer, mas, pondo as coisas no
simples, quem deu fé do acontecimento foi um automobilista que, passando quando
já a noite se fechava, sentiu dar o carro um salto brusco, como se as rodas
tivessem entrado e saído de um rego transversal, e foi ver o que era, capaz de
haver obras de beneficiação do piso que imprudentemente se tivessem esquecido
de assinalar. A racha tinha então meio palmo de largura, uns quatro metros de
comprimento, se tanto. O homem, que era português, de nome Sousa, e viajava com
a mulher e os sogros, voltou para o carro e disse, Até parece que já entrámos
em Portugal, imagina, uma vala enorme, podia amolgar-me as jantes, partir um
semieixo. Não era vala, nem era enorme, mas as palavras, assim nós as fizemos,
têm muito de bom, ajudam, só porque as dizemos exageradas logo aliviam os
sustos e as emoções, porquê, porque os dramatizam. A mulher, sem dar muita
atenção à informação, respondeu, Vê lá tu, e ele achou que era de seguir o
conselho, embora não tivesse sido essa a intenção, a frase da senhora, mais
interjeição do que recomendação abreviada, era daquelas que de resposta só
fazem as vezes, tornou ele a sair e foi verificar as jantes, estragos visíveis não
havia, felizmente. Daí a dias, já na sua terra portuguesa, será herói, dará
entrevistas à televisão, à rádio e à imprensa, Foi o primeiro a ver, senhor Sousa,
relate-nos as suas impressões do terrível momento. Repetirá vezes sem conto, e
sempre há-de rematar a ornamentada história com uma pergunta ansiosa e
retórica, de causar arrepios e que a si próprio arrepia deliciosamente, como um
êxtase, Se o buraco fosse maior, já pensou, como dizem que é agora, tínhamos
caído lá dentro, sabe Deus até que fundura, e mais ou menos assim também
pensara o galego quando perguntou, se estão lembrados, Para onde vai essa água».
In José Saramago, A Jangada de Pedra,
Editorial Caminho, 1986, 16ª Edição, Reunidos, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-210-289-6.
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