jdact
«(…)
Folheio os mapas. No Oceanus Aethiopicus navegam naus galeões e caravelas nadam
dragões e sereias saltam por sobre a espuma das ondas peixes voadores... ao
alto à esquerda uma rosa-dos-ventos encimada pela flor-de-lis sanefas e
pingentes coloridos aqui está no canto inferior direito um tronco de léguas um
compasso aberto entre dois pontos do mapa e aplicado à escala ficamos a saber
quantas léguas correm do Umbigo do Mundo aos reinos de Gog e Magog... O próprio
rei, podes testemunhá-lo tão bem como eu, o suspeitava. A esta horar, repito
com o pensamento longe, ele já sabe quem foi. Mas eu resistia a crer em tão
monstruosa maquinação. Todas as medidas haviam sido tomadas. Rigorosíssimas. vigiava-se
o que o rei comia ou bebia... e no entanto… ...o grande golfão do mar... para o
Sul corre a costa já explorada que aqui em baixo dobra para o outro oceano onde
se alteia o cabo fundamental... tormentas? Esperanças?... Tu as tiveste ambas, meu
senhor... gritaria de marinhagem revoltada, a bordo há fome e doença, a alguns
apodrecem-lhe as gengivas desse mal que os físicos chamam celetirbe e o povo
escorbuto corre que convém comer fruto de espinho...
...Deus
me perdoe! Às vezes penso que se deveria também ter examinado a hóstia que ele
comungava... Que sacrilégio! Até que aquele médico... Como se chama ele? Mestre
Josepe. Eu estava presente. Na sexta-feira manhã cedo o rei sentiu-se melhor,
com mostras de ser curado. A festa que foi! Mandou logo chamar o filho a Vila
Nova e com ele e os da companhia dele almoçou e folgou em boa disposição. Assim
que se retiraram com o menino Jorge, o rei voltou a achar-se mal, passou uma
noite tormentosa de suspiros e ânsias. No sábado piorou, dobrou-se-lhe o fluxo,
sobrevieram-lhe desmaios e agonias de morte. No auge de um destes acidentes, de
tal maneira trespassou que todos o julgaram finado. O bispo de Tânger fechou-lhe
até os olhos e a boca. Que pressa, bispo!, veio ele a si. Ainda não chegou a
minha hora. Quis então saber a verdade, que o desenganassem. Os médicos
responderam que se reuniriam para sobre isso deliberarem e lhe enviariam
recado... Aí está o que tem sido estranho, mais de uma vez, na doença do rei.
Sente-se ma1, vêm os médicos, recupera a saúde. Come ou bebe alguma coisa, logo
torna a adoecer. Tenho reparado nisso e não atino com explicação, considero eu desdobrando
novo mapa e lançando-lhe a vista. A não ser... Depois que os físicos
comunicaram ao bispo de Tânger e ao prior do Crato o seu parecer que eram
desesperados da saúde do rei...
Esta
é a linha que divide o mundo em duas partes... por estas paragens onde se diz
que cresce o pau-brasil lançaram os nossos as pesadas âncoras..., psiu! El-rei
não quer que se saiba!... deixámos de ver a estrela do Norte capitão..., como
vai ser agora perdidos neste pego tão escuro..., olha além para Sul outro
luzeiro cintila a indicar-nos o caminho...
Demoraram
nesta antecâmara a trocar ainda as suas opiniões. Eu vinha entrando e bem
acalorada era a contenda, por minha fé! Mestre Josepe batia com o punho na mão
espalmada e afirmava sem rodeios… rosalgar mudo, eu ouvi. Sabes que coisa seja?
... rosalgar, dizia ele. Ministraram ao rei rosalgar e mais de uma vez! É o pó
das cavernas, o rosalgar vermelho. Como não sabes? Não te vi eu no Largo do
Pelourinho o outro dia? Recado do rei… Os outros dois médicos contestaram-no. O
físico-mor. mestre Rodrigo. cheio de dúvidas e suspensões. O doutor Lucena,
muito latim que não cheguei a entender. Mas que importa isso agora? O rei já
sabe quem foi. Deixa-te de crendices e de sonhos. Temos é de examinar os
factos.
Tudo
o que se sonhou a realidade está indo além... Tiveste um sonho que quase realizaste
não fora a morte cortar-te o passo... enviaste por terra mensageiros e esculcas
por desertos rios e montanhas sob sóis e neves e chuvas…, por mar teus barcos
frágeis teus mareantes esforçados rudes..., não fora a morte ou quem ta pôs a escorrer
no sangue..., um dia se adregasse o homem vir a saber voar também enviarias por
esse espaço a visitar estrelas como dizem que voou outrora Ícaro com asas de
cera..., observar as pessoas sem que elas desconfiem, até apanharmos o fio da
meada. Aonde levaria esse fio? Quem estará na outra ponta? Perigoso bulir na
verdade... E quem somos nós para levantarmos, agora que o rei morreu, sequer
uma ponta do véu?» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008,
ISBN 978-972-290-330-1.
Cortesia de Difel/JDACT