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O que
contam as andorinhas
«Saciemos
a sede, manas, no repuxo deste chafariz, enquanto velamos por que, em sossego,
os dois amantes, à sombra do salgueiro grande, que verga os ramos a aconchegar-lhes
intimidade, se abracem e beijem e se conheçam. Eu vou de ronda, em voo rasante
ao longo do muro destes paços, a prevenir não surja algum intruso a interromper-lhes
os ardores. Ah, minha amada! Sinto ferver meu sangue, borbotar a vida. Ah! Que não
posso suportar, em meio de tanta ventura, a ideia deste teu corpo conspurcado por...
Oh, meu amigo! Que prazer me estás dando... e que tortura! Raiva e sangue choram
as lágrimas da herdeira da casa da Sortelha. Ouvi que ela é constrangida a casar-se
com o tio. O meu ninho, no beiral do paço, fica mesmo por cima da janela das criadas,
lá no alto da cornija, junto à mansarda. Aqui nascemos o ano passado. Viemos
encontrá-lo meio destruído por mor da invernia. Com bolinhas de lama colhidas ao
redor do lago do jardim, grudadas com a nossa baba, o reconstruímos. Conhecemos
as vidas dos nossos ascendentes, colaterais e vizinhos, bem como as dos humanos
sob cujos beirais nos abrigamos. Transmiti-las-emos aos nossos filhos, que aqui
hão-de vir para o próximo ano. Assim se conservam os laços de nossa nação e os daqueles
que, a cada primavera, com alegria nos vêem chegar. Muito do que sabemos escutámo-lo
das tagarelas das criaditas. O que elas dizem! Então Branca Vilhena é obrigada a
casar com o tio! Dote cobiçado. Jogos familiares de títulos e de bens. Que estranhos
são os homens! Pelo casamento, o conde de Vila Nova, dom Gregório Taumaturgo,
acrescenta-se, com vir a ser senhor da casa da esposa. Pobrezinha! Quinze anos
e ele trinta e oito... ou trinta e nove. Podia ser pai dela. O mais triste é que
a menina entregou o coração ao jovem primo, Francisco Manuel. São primos? Descendentes
do descobridor da Madeira, João Gonçalves Zarco. Ela, do primogénito deste,
João Gonçalves Câmara, segundo capitão da dita ilha; ele, do segundo filho, Rui
Gonçalves Câmara, donatário da ilha de S. Miguel, nos Açores, e de uma manceba.
Como reage ele a este forçado casamento? Desorientado, desprevenido, é bem de ver.
Alistou-se na Companhia dos Aventureiros, que está prestes a sair para o mar...
Com dezassete anos! ...a proteger dos corsários as naus do Oriente e do Ocidente
e a defender portos e costas. Porque reuniu Deus em ti, minha amada. tanta beleza
senão para eu te amar? Estes cabelos sedosos, estes olhos apaixonados, esta testa
de neve e estes lábios recortados, quentes para eu os beijar… este teu corpo que
enlaço, em que me afundo e confundo... e a minha alma... Sou tua!... És minha, se
te perco? Se perco tudo isto com te perder? És como rubi dado a lapidário inexperiente!
Rubi? Sou uma pedra? Preciosa. Pérola arrebatada por quem te desmerece… Não me lembres
isso. ...diamante fulgoroso que das mãos me foge, safira vendida e engastada em
ferro, esmeralda valiosa a brilhar em dedo estranho, oh, minha querida! Tu tens
mais valor que todas as pedras preciosas do mundo...
Faz versos
o desgraçado, em tal conjuntura? Ah! Odeio teu tio. Fujamos, minha amada, para longe
de tudo e de todos. Não temos ambos por avô o descobridor da Madeira? Não te servirá
a lembrança daquele formoso par de amantes que aí se procuraram refúgio? Infeliz
refúgio! A Machim e Ana esperava-os a tumba... Não, meu amigo, é necessário conservarmos
a cabeça fria...
Cabeça
fria, cabeça quente... Escuta o que ela diz. Que é preciso manter a cabeça fria,
responde-lhe ela, não ouves? Se fugissem, os esbirros da família depressa sairiam
por estradas, caminhos, ondas do mar, no encalço deles... É bem de ver. ...Ela,
sem herança, sem privilégios e desprezada, sepultá-la-iam num convento distante
onde definharia esquecida. Ele... confiscar-lhe-iam os bens, a liberdade e
lançá-lo-iam nas galés, os pulsos e tornozelos acorrentados de grilhetas. É isso
que tu queres?» In Fernando Campos, O Prisioneiro da Torre Velha, Quare?, Difel,
Difusão Editorial, 2003, ISBN 972-290-669-0.
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