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luz do luar prateava o quarto, pintando a cama com centenas de tons cinzentos, brancos
e pretos. Os dois homens deitados na cama estavam profundamente adormecidos.
Estavam a dormir tão intensamente que mal se mexeram quando saí do meio deles. A
minha pele emitia um brilho produzido pelas carícias do luar. O vermelho-sangue
puro do meu cabelo agora parecia preto. Vestira um robe de seda, porque estava
fresco. As pessoas até podem falar da Califórnia soalheira, mas durante a madrugada,
quando a alvorada não passa ainda de um sonho distante, está sempre muito frio.
A noite que caíra, qual bênção agradável, para lá da minha janela era uma noite
de Dezembro. Se estivesse em casa no Illinois, ter-se-ia sentido o cheiro a neve,
quase suficientemente estaladiça para se derreter na língua. Fria o suficiente
para queimar os pulmões. Tão fria que era tal e qual como respirar fogo gelado.
Era esse o sabor que o ar devia ter no início de Dezembro. A brisa que
rastejava pela janela por trás de mim continha um travo seco a eucalipto e o
aroma do mar longínquo. Sal, água e algo mais. Aquele odor indefinível que nos lembra
o oceano não um lago, não algo utilizável, algo bebível. Pode-se morrer de sede
à beira de um oceano.
Permanecera
durante três anos no litoral deste oceano em particular e morri um pouco todos os
dias. Não literalmente, sobrevivera, mas a mera sobrevivência pode tornar-se bastante
solitária. Eu nascera princesa, princesa Meredith NicEssus, membro da corte
real das Fadas. Eu era uma fada princesa da vida real, a única alguma vez nascida
em território norte-americano. Os meios de comunicação haviam dado em doidos há
três anos, quando desapareci. Avistamentos da princesa americana das Fadas competiram
com os avistamentos de Elvis. Eu fora localizada por todo o mundo quando, na realidade,
permanecera o tempo inteiro em Los Angeles. Escondera-me, tornara-me na comum
Meredith Gentry, Merry para os meus amigos. Não era mais do que outro ser humano
com antepassados feéricos a trabalhar para a Agência de Detectives Grey, onde nos
especializávamos em problemas sobrenaturais e em soluções mágicas.
A lenda
diz que um ser feérico exilado do mundo das Fadas definhará e morrerá. Isso tanto
é verdade como mentira. Os meus antepassados transmitiram-me sangue humano suficiente
para permitir que não me sinta incomodada ao estar rodeada por metal e tecnologia.
Alguns dos seres feéricos menos poderosos definhariam e morreriam literalmente
numa cidade construída por humanos. No entanto, a maior parte dos seres feéricos
consegue viver numa cidade; podem não ser felizes, mas sobrevivem. Uma parte deles,
porém, realmente desvanece, aquela parte que sabe que nem todas as borboletas
que vemos o são verdadeiramente. Aquela parte que viu o céu nocturno preenchido
por uma precipitação de asas, como um vento tempestuoso, asas de carne e escamas
que levavam os humanos a murmurar designações como dragões e demónios; aquela parte
que assistiu a viagens de Sidhe em cavalos feitos da luz das estrelas e de sonhos.
Essa parte começa a morrer.
Eu
não me exilara, eu fugira, porque não conseguia sobreviver às tentativas de
assassinato. Simplesmente não possuía a magia nem o poder político para me
proteger a mim própria. Salvara a minha vida, mas perdera outra coisa. Perdera
o contacto com Fadas. Perdera o meu lar. Agora, ao debruçar-me sobre o meu peitoril,
com o aroma do oceano Pacífico pelo ar, baixei o olhar para os dois homens e soube
que estava em casa. Ambos pertenciam à corte real Sidhe, eram Sidhe Unseelie,
faziam parte daquela multidão sombria que, um dia, talvez eu viesse a governar,
se conseguisse manter-me um passo à frente dos assassinos. Rhys estava deitado de
barriga para baixo, com uma mão pendurada para fora da cama e a outra perdida algures
por baixo da almofada dele. Até mesmo em repouso aquele braço visível era musculado.
O seu cabelo era uma catarata cintilante de caracóis brancos, que lhe
acariciavam os ombros despidos e se derramavam ao longo das suas costas fortes.
O lado direito do seu rosto estava pressionado contra a almofada e, por isso, não
me era possível ver as cicatrizes da zona onde lhe fora retirado o seu olho. A sua
boca perfeita estava para cima, meio sorridente enquanto dormia. A sua beleza
era, de certo modo, infantil, e assim o seria para sempre.
Nicca
estava deitado de lado, todo enroscado em si próprio. Acordado, o seu rosto era
atraente, quase na fronteira do bonito; a dormir tinha as faces angélicas de uma
criança. Tinha um ar inocente, frágil. Até o seu corpo era mais macio, menos
musculado. As suas mãos, porém, estavam calejadas devido ao manejo da espada e,
por baixo da suavidade da sua pele, havia puro músculo. Contudo, em comparação com
os outros guardas, ele era mais cortesão do que mercenário. A cara tanto
condizia com o corpo como não. Media pouco mais de 1,83 m, a maioria dos quais correspondiam
a umas longas, longas pernas; a sua cintura estreita e os seus braços graciosos
balançavam-se sobre todo aquele comprimento. Nicca era maioritariamente caracterizado
por tons castanhos. A pele dele era da cor de leite com chocolate e o cabelo
que lhe caía directamente até aos joelhos detinha um rico e puro tom castanho-escuro.
Não era moreno, era sim da cor de folhas caídas no chão da floresta durante muito
tempo até à altura em que, ao serem varridas, apresentam um castanho rico e húmido,
algo em que se pode mergulhar as mãos e de onde estas saem molhadas e a cheirar
a uma nova vida». In Laurell Hamilton, Carícias da Noite, 2003, Edições Saída de
Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-493-8.
Cortesia de ESdeEmergência/JDACT