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Milão.
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«(…)
Deus me acuda... Deus me acuda... Virgem Santíssima... Incapaz de articular
outras palavras, a voz rouca esgotou-se-lhe num sussurro. O homem fixou ainda
por um tempo o cadáver, sem conseguir, sequer, mover um único músculo. Depois,
com um repentino sobressalto, de todos os tendões do seu corpo e como que
atacado por um enxame de abelhas, ergueu-se e desatou a correr ao longo da
margem, na direcção do ancoradouro dos barcos. Está um cadáver dentro de água!
Corram, corram todos, está um morto na água! A voz regressara e saía-lhe agora
com toda a força da garganta. Por um instante, o ruído quotidiano que
acompanhava a vida naquele ancoradouro parou. Muitas cabeças voltaram-se na direcção
daquele homem que gritava e corria: os carroceiros pararam os cavalos, os
serviçais interromperam a conversa, os arrais permaneceram com os fardos das
mercadorias no ar. Já sem ar, o descarregador arrastou-se pela margem, perto
dos marcos de atracação que se afundavam maciços na água: enquanto tentava
respirar de novo, apoiando-se ao bordo de uma barcaça encalhada, dois arrais
aproximaram-se dele pedindo-lhe explicações. Sem responder, o homem limitou-se
a apontar a água com o dedo: o corpo estava agora quase junto da margem, grotesco
fantoche acinzentado e agora bem visível. O horror estampou-se de forma
evidente no rosto dos dois interlocutores: com a boca escancarada, permaneceram
imóveis fixando o cadáver que aflorava da água, boiando, à superfície, sustido
pela dança macabra da corrente.
Venham,
venham cá, Santo Deus, venham ver!... As vozes grosseiras dos arrais
sobrepunham-se, enquanto os seus braços gesticulavam descompostos: em poucos
instantes o dique esvaziou-se e a margem encheu-se de gente, que tremia de
sórdida curiosidade. A pouco e pouco, o bruaá excitado foi-se calando até se
esgotar completamente num silêncio atónico, quando a última onda, graciosa,
depositou sobre a margem o corpo inchado e semi-nu de uma mulher. Agora imóvel,
estendido sobre os seixos e ensopado de água suja, só os longos cabelos negros
ondeavam, preguiçosos, na ressaca ligeira: uma camisa esfarrapada, da qual
apenas restara uma manga inteira, e um par de calças de linho ensopadas de lama
eram a única roupa que cobria o cadáver. O homem alto aproximou-se, parando, no
entanto, quase de seguida, devido ao repugnante cheiro a morte. No rosto tumefacto,
os olhos escancarados saltavam das órbitas, da boca aberta pendia a língua
inchada, coberta de limo preto. Os peixes e os caranguejos tinham feito o seu
trabalho: as mãos, os pés e os braços estavam, aqui e ali, roídos.
A
polícia, é preciso chamar a polícia, e depois o padre... A voz do descarregador
elevou-se, decidida, acima do murmúrio circunstante das pessoas fascinadas com
aquele espectáculo horrendo: um dos arrais, depois de se ter persignado,
virou-se e, apressadamente, saiu do dique direito à poterna, onde tinha
avistado o corpo da guarda. Então, é este o medalhão de que me falou, madre? O
secretário particular do arcebispo rodava entre os dedos um precioso berloque
de prata: ao centro do medalhão via-se, finamente esboçado, o recorte de uma
pequena torre em cuja base, circundada de uma voluta de folhas, estava gravado
um G muito trabalhado, coberto de esmalte azul, delicadamente incrustado. Os
olhos da madre abadessa fixavam os olhos brilhantes do padre; o rosto rugoso
assumiu uma expressão atenta, com a boca severa apenas entreaberta. Se
não fosse este o medalhão, não o teria mandado chamar, irmão Algiso, sussurrou
a velha freira. Uma vez que ambos sabemos de que se trata, parece-me
desnecessário estar para aqui a falar... Já avisou o arcebispo? O secretário
anuiu e, envolvendo cuidadosamente o medalhão num pedacinho de linho, fê-lo
desaparecer por debaixo da sotaina. O arcebispo já foi informado, madre: quando
esta bugiganga estiver nas suas veneráveis mãos, terá o cuidado de a fazer
chegar à sua legítima proprietária...
É um
pouco difícil, não acha? A voz da abadessa tornara-se cortante e deixava
escapar uma indignação que só com muito esforço controlava. Considerando que
aquela rapariga já foi sepultada, penso que o brasão da família já não vai ser
necessário! O frade empalideceu e, levantando-se rapidamente do banco, abriu a
boca para contra-atacar, mas a madre abadessa antecipou-se. Basta, irmão
Algiso! Não esteja para aí a dizer mentiras em cima de mentiras: já tenho
bastantes anos para saber distinguir a verdade das maquinações com as quais se
tenta modificá-la, e adaptada às circunstâncias. É verdade, teria sido melhor
para todos se a corrente de Vettabbia tivesse arrancado também este medalhão do
corpo daquela desgraçada, mas, uma vez que as coisas se passaram assim, era meu
dever participar-lhe... Dominando a voz irada que baixou de tom, num sussurro,
a freira continuou, fixando, decidida, o olhar do frade. O problema, e o irmão
sabe-o muito bem, é que temos quase a certeza de que aquela mulher foi
assassinada. Oh, não me interrompa..., acrescentou irritada, travando com um
gesto da mão a resposta que estava prestes a sair da boca do seu interlocutor,
deixai-me dizer a verdade! Nada do que vos estou a contar sairá destas paredes,
mas, pelo menos aqui, procuremos fazer justiça àquela pobre rapariga, que em
vida teve bem pouca... Claro que não ia chamar-se um médico para ver aquele
golpe profundo que circundava o pescoço do cadáver: quando foi trazido aqui
para o nosso mosteiro, a irmã que limpou e preparou o corpo para a sepultura
mandou-me chamar à pressa, no meio de uma grande agitação. O sulco do pescoço
era de tal forma profundo que o fio do medalhão se enterrara na carne, o que
certamente impedira que o assassino o tivesse arrancado. Não, irmão Algiso,
acrescenta secamente, prevenindo a pergunta que estava a ser preparada, não,
nunca irá saber, nem o senhor nem o arcebispo, o nome da irmã que fez aquela
ingrata tarefa. Não tenciono pôr em risco a vida das minhas protegidas, aqui no
mosteiro! Oh, claro, se se tivesse tratado de uma mulher do povo, o facto não
teria interessado a ninguém! Mas aquela incisão, aquelas iniciais... Quem não
conhece a família Gisalbertini di Calepio? Quem não sabe da sua ligação
estreita com a família do sobrinho do arcebispo?» In Valeria Montaldi, O
Senhor do Falcão, 2003, tradução de Maria Irene Carvalho, Editorial Notícias,
Editora Casa das Letras, 2005, ISBN 978-972-461-618-6.
Cortesia
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