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Nesse caso prometo oferecer outro tanto a São João Baptista, que deu o nome ao nosso
navio, disse então Clemência. E se escaparmos e Deus me fizer a graça de me dar
um filho, chamar-lhe-ei João. Mas os nossos reis nunca têm esse nome, senhora, respondeu-lhe
Bouville. Será Deus a decidir. Ajoelhou e pôs-se a rezar. Por volta do meio-dia
a violência da tempestade começou a diminuir e todos sentiram a esperança
renascer. A seguir o Sol rompeu por trás das nuvens. A terra estava à vista. O capitão
reconheceu com alegria a costa da Provença e, mais precisamente, quando se aproximaram
um pouco, as angras de Cassis. Sentia-se muito orgulhoso de ter sabido manter o
navio na sua rota. Espero que penseis fundear o mais depressa possível junto daquela
costa, disse Bouville. É a Marselha que devo conduzir-vos, senhor, respondeu o
capitão, e de resto já não estamos longe. Seja como for, já não tenho âncoras que
cheguem para fundear junto daqueles rochedos. Um pouco antes do pôr do Sol, o San
Giovanni, movido pelos remos, apresentou-se na embocadura do porto de Marselha.
Uma embarcação foi lançada ao mar para prevenir as autoridades comunais e para mandar
descer a corrente de ferro que fechava a entrada do porto, entre a Torre de Malbert
e o Forte de São Nicolau. Pouco depois apresentaram-se no navio o governador, almotacéis
e prud’hommes (membros de um tribunal electivo composto em número igual de
representantes dos assalariados e dos patrões e cujo papel é dirimir os conflitos
individuais do trabalho), curvados sob o forte mistral, para receber a sobrinha
do seu suserano, já que na altura Marselha era uma possessão dos angevinos de
Nápoles.
No cais,
os operários das salinas, os pescadores, os fabricantes de remos e de mastros, os
calafates, os cambistas, os mercadores da judiaria, os empregados dos bancos de
Génova e de Siena, contemplavam estupefactos o enorme navio sem velas, sem mastro,
em evidente mau estado, mas cujos marinheiros dançavam sobre o convés gritando que
se tratara de um milagre. Os cavaleiros napolitanos e as damas de companhia
tratavam de pôr ordem nas toilettes. O
conde de Bouville, que emagrecera várias libras e parecia dançar na roupa, proclamava
aos que o ouviam a eficácia da sua promessa. Parecia achar que todos os que se encontravam
a bordo deviam a vida à sua piedosa iniciativa. Senhor Hugo de Bouville, disse-lhe
Guccio com uma ponta de malícia, ao que sei, não há tempestade em que ninguém faça
pelo menos uma promessa como a vossa. Como explicar nesse caso que tantos navios
acabem por se afundar? Isso acontece sem dúvida por se encontrar a bordo algum incréu
como vós, respondeu com um sorriso o antigo camareiro-mor.
Guccio
foi o primeiro a pôr pé em terra. Quase se atirou da escada, para mostrar a sua
coragem e agilidade. No entanto, os que o olhavam depressa o ouviram dar um grito.
Ao fim de vários dias sobre um soalho movediço, não estava preparado para pôr o
pé em terra firme. Escorregou na pedra viscosa e caiu à água. Por pouco não foi
esmagado entre o casco e o cais. Por instantes, a água ficou vermelha à sua volta.
Na queda, fora apanhado por um gancho de ferro. Tiraram-no da água quase desmaiado,
a sangrar, com a coxa rasgada até ao osso. Foi assim transportado ao hospital.
O hospital
A grande
sala destinada aos homens era do tamanho da nave de uma catedral. Ao fundo havia
um altar, onde todos os dias eram celebradas quatro missas, as vésperas e o ofício
da tarde. Os doentes privilegiados ocupavam uma espécie de alvéolos metidos nas
paredes e a que se chamava quartos de recomendação, os restantes ficavam em camas
para dois: os pés de um junto da cabeça do outro. Os irmãos hospitaleiros, com longas
vestes escuras, passavam constantemente entre as camas, tanto para ir cantar os
ofícios como para dispensar cuidados aos doentes ou servir as refeições. O culto
misturava-se com a terapêutica: os estertores respondiam aos versículos dos
salmos, o perfume do incenso não bastava para disfarçar o cheiro cruel da febre
e da gangrena. A morte oferecia-se em espectáculo público. As inscrições à volta
das paredes em grandes letras góticas convidavam os doentes a preparar-se para a
morte, e não para a cura.
Era aí
que se encontrava Guccio há quase três semanas, numa alcova, a transpirar com o
calor sufocante do Verão, que tornava o sofrimento mais esgotante e o internamento
mais sinistro. Via com tristeza os raios de sol que atravessavam as janelas
altas e vinham projectar manchas de ouro no cenário desolador. Não podia fazer o
menor movimento sem um gemido. Os bálsamos e os unguentos dos irmãos
hospitaleiros queimavam-no como chamas e cada penso constituía uma nova tortura.
Ninguém sabia dizer-lhe se a ferida também afectara o osso, mas Guccio estava certo
de que o mal não estava apenas na carne, porque sempre que lhe apalpavam a
perna ou os rins quase se sentia desmaiar». In Maurice Druon, Os Reis
Malditos, Os Venenos da Coroa, 1956, tradução de Helena Ramos, colecção Cavalo
de Tróia, Gótica, 2006, ISBN 972-792-165-5.
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