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Ao recordar agora os anos passados, Maud lembrou-se de que o seu último contacto
com Easterday se verificara um ano ou dois após seu encontro em Taiti. Nessa
altura tinham publicado um estudo sobre o povo de Bau, nas ilhas Fidji, e Adley
recomendara-lhe que enviasse a Easterday um exemplar autografado. Ela assim
fizera e passados alguns meses Easterday agradecera a dádiva numa breve carta
formal a que não era, porém, estranho um certo desvanecimento por tão augustos
conhecidos se terem lembrado dele. Empregara a palavra augustos, e depois disso
Maud convencera-se de que ele estudara na universidade de Gõttingen. Fora essa
a última vez que tivera notícias de A Easterday, a carta de agradecimento de
seis ou sete anos antes, até ao momento presente. Fixara o endereço nas costas
do envelope. Que poderia querer dela aquele rosto vago, semi-esquecido, tão longe?
Dinheiro? Uma recomendação? Elementos sobre um tema qualquer? Tomou o envelope
na palma da mão. Era muito pesado para se tratar de um simples pedido. Mais
provavelmente se trataria de uma informação. O homem que lhe escrevia, pensou,
tinha alguma coisa a comunicar-lhe. Pegou na adaga Ashanti, recordação de uma jornada
pela África naqueles dias pré-Gana entre as duas guerras mundiais, que se
encontrava em cima da secretária, e com um golpe apenas abriu o envelope. Desdobrou
as frágeis folhas de papel de correio aéreo. A carta fora cuidadosamente dactilografada
numa velha máquina, já em péssimo estado, pois muitas das palavras apresentavam
pequenos buracos, em vez de um e ou de um o via-se, na maioria das vezes, um
furo, contudo, a carta fora batida com cuidado, laboriosamente, a dois espaços,
certos. Ela contou as folhas de papel de arroz: vinte e duas ao todo. A sua
leitura ocupá-la-ia durante algum tempo. Havia a outra correspondência e
diversas notas a rever antes da última aula da manhã. Todavia, sentiu a curiosa
e bem familiar censura do segundo ser, a não intelectual, não-objectiva,
segunda Maud Hayden, dissimulada dentro de si, e isto por se tratar do ser feminino,
não científico, intuitivo. Agora, este segundo ser impunha-se, recordava-lhe os
mistérios e as excitações que, muitas vezes no passado, tinham vindo de terras
longínquas. O seu segundo ser só raramente pedia para ser escutado; porém,
quando o fazia, ela não o podia ignorar. Seus melhores momentos provinham de
tal obediência. Sem dar ouvidos ao bom senso e sem se importar com a pressão do
tempo, sucumbiu. Tornou a sentar-se, pesadamente; sem atender ao protesto metálico
da cadeira giratória, levou a carta quase rente aos olhos e, lentamente,
começou a ler para si mesma aquilo que, esperava, talvez constituísse o melhor
dos Pequenos Prazeres do dia:
Professor Alexander
Easterday Hotel Temehami Papeete, Taiti.
Dra Maud Hayden. Presidente, Departamento de
Antropologia Edifício das Ciências Sociais, Sala 309 Raynor College Santa
Bárbara, Califórnia, E. U. A. Cara
Dr.aHayden. Estou certo de que esta carta constituirá para a senhora uma surpresa.
Confio, no entanto, em que tenha a bondade de se recordar de mim. Tivea grande
honra de a conhecer, e a seu ilustre marido, há cerca de dez anos, quando
passaram alguns dias em Papeete, vindos das ilhas Fidji, em viagem para a
Califórnia. Espero que se lembrará da sua visita à minha loja de objectos da Polinésia,
na Rue Jeanne d'Arc, onde teve a generosidade de me felicitar pela minha colecção
de peças arqueológicas primitivas. Constituiu também para mim um memorável
momento ter sido convidado para jantar com a senhora e seu marido. Embora me
encontre afastado dos principais interesses da minha vida, tenho conseguido manter-me
em contacto com o mundo exterior, e isto devido ao facto de assinar diversos
jornais de arqueologia e antropologia e também o Der Spiegel, de Hamburgo. Assim,
chegam até mim, de tempos a tempos, pormenores acerca das suas actividades, que
acolho com orgulho, devo admitir. Também, nos últimos tempos, adquiri alguns
dos seus primeiros livros, publicados em edições, brochuras, mais acessíveis,
que li com extraordinário interesse. Verdadeiramente, acredito, e não apenas
eu, que o seu distinto marido e a senhora prestaram a maior das contribuições à
etnologia dos nossos dias. Portanto, foi com grande consternação que li, há
três ou quatro anos, creio, no nosso semanário local, Les Débats, a notícia da
morte do Dr. Hayden. A profunda comoção que me causou tal ocorrência não me
permitiu escrever nessa altura, mas agora que os anos passaram apresento-lhe as
minhas mais sinceras condolências. Espero que tenha resistido, com ânimo, face
à dor motivada por tão grande perda, e se encontre agora já resignada e de boa saúde,
dedicando-se de novo ao ensino, escrevendo e viajando, como sempre. Deus queira
que esta carta chegue às suas mãos, pois possuo apenas o seu cartão com este endereço;
porém, se tiver mudado de residência, […] O avião, após descrever um
semicírculo, dirigiu-se para aquela distante mancha de terra que, gradualmente,
se tornava mais distinta, de modo que pude contemplar com certa nitidez os íngremes
penhascos da costa e o que talvez fosse um planalto com uma crista de montanhas
além. Muito bem, quanto mais perto melhor, disse Rasmussen ao seu co-piloto.
Depois, voltando-se para mim: veja com seus próprios olhos, professor... Não há
lugar para uma aterragem. Isto seria verdade se não houvesse planalto, mas eu suspeitava
de que havia, e confessei a Rasmussen o que pensava. Exigi que se aproximasse
mais e que voasse mais baixo, de modo que eu pudesse satisfazer de um modo ou
de outro a minha curiosidade, Uma vez mais, Rasmussen, grunhindo, preparava-se
para me antepor as suas objecções em voz alta quando o interrompi com toda a
severidade que consegui exprimir...» In
Irving Wallace, As Três Sereias, 1964, Livros do Brasil, colecção Dois Mundos,
2000, ISBN 978-972381-025-7.
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