sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «Estende o braço: a ventoinha, num ruído áspero, metálico, veloz, desprende uma frescura boa, salutar, que lhe faz cerrar os olhos e lhe atira os cabelos para trás»

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A Noite
«(…) Passeia os dedos pelos braços transpirados. O calor redobrou para a noite. Mole, peganhento, agarra-se, molda-se a tudo, pega, adere. Até aos olhos. Inclinada na varanda, tenta distinguir qualquer coisa. O suor colou-lhe os cabelos à pele branda do pescoço; e às pernas altas, a camisa de noite. Até mover as mãos na balaustrada morna de mármore é penoso. A luz do quarto projecta-se no chão, um risco duro, vibrante, a tocar-lhe os pés descalços. Até mover os pés no chão tépido de mármore é penoso. Move-se devagar, dificilmente: os braços caídos, tombados, a boca seca, a língua grossa. O calor intensificou-se para a noite, rebola-se, desloca-se devagar, cola-lhe os cabelos à pele branda do pescoço e a camisa de noite às coxas. Nem os dedos ergue para limpar o suor que lhe marca o lábio superior, mole, apática, até o respirar lhe é penoso. Sem um mínimo pensamento, sem qualquer vontade, ela move-se devagar com a camisa de noite pegada às pernas, os braços tombados, a boca entreaberta. No limiar do quarto os movimentos tornam-se mais lentos e, lá dentro, olha com indiferença para a cama, sobre a qual se deixa cair de qualquer maneira. No tecto, pintadas, as duas cabeças de anjo que parecem dormir tentam capturar-lhe a atenção, como sempre.

O Odor
O seu perfume estende-se por toda a casa. Não o perfume exterior, fictício, que dentro dos pequenos frascos se detém, se concentra, ou que nos grandes se dilui, se subtiliza, antes um odor forte, intenso: um perfume inconfundível, obcecante. Ergue a cabeça, move os braços, as pernas, e ele solta-se, devagar, envolvente, macio. Escapava-se-lhe da pele, da vagina, para se enroscar nos outros, nas coisas, para invadir a casa, aveludado, tenso, vibrante. A mulher tira da caixa transparente um colar de pedras azuis, depois um branco, outro cor-de-rosa de contas redondas, enormes, ergue os braços e prende um após outro no pescoço, a caírem sobre o peito, nos ombros, sobre a pele, pesados. Frágil, dá ideia de não lhes poder aguentar o peso, ou o excesso de cor que se lhe alastra até aos pulsos enquanto ergue com ambas as mãos os cabelos e se olha, absorta, reflectida no espelho antigo que lhe decora o quarto. Afinal apenas sente a fricção aderente da combinação de renda, única coisa que consegue aquentar sobre o corpo na atmosfera peganhenta, doce. Descalça, vai até à janela e encosta a testa à persiana. Todos os seus movimentos são inúteis, movimentos de ócio, sem qualquer fim, sem qualquer futuro; gastam-se, consomem-se mal os completa, desfazem-se mal ela os repete. Frágil, de uma magreza, de uma palidez frágil, repete se na mesma apatia de sempre, quotidianamente, sem passado, indiferente e raivosa. Percorre o quarto arrastando os pés na alcatifa. O seu perfume estende-se por toda a parte. Um odor acre, interno, rasgado a partir do momento em que se desprende dela: rasgado, dilacerado, seco. Mexe as pernas, os cabelos caem-lhe agora sobre os ombros. Arranca os colares um por um, a combinação desce-lhe, fá-la escorregar pelos quadris num só movimento de libertação. Estende o braço: a ventoinha, num ruído áspero, metálico, veloz, desprende uma frescura boa, salutar, que lhe faz cerrar os olhos e lhe atira os cabelos para trás numa espécie de bailado suspenso». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, 1970, Publicações Europa América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia PEAmérica/JDACT