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e wikipedia
«(…) Adiante,
perto da 8.a, dois sujeitos de bata branca erguiam o capot de um
Toyota para lhe examinar o funcionamento das vísceras orientais. Estes amarelos
sacanas começaram pelas gravatas ambulantes, já nos colonizam de rádios e
automóveis e qualquer dia fazem da gente os kamikazes de Pearl Harbour futuras;
marralhos para dar com os cor… nos Jerónimos no Verão, a dizer banzai, quando
casamentos e baptizados se sucedem em ritmo trepidante de metralhadora mística.
A doente (quem entre aqui para dar pastilhas, tomar pastilhas ou visitar
nazarenamente as vítimas das pastilhas é doente, sentenciou o psiquiatra no
interior de si mesmo) apontou-lhe ao nariz as órbitas enevoadas de comprimidos
e articulou numa determinação tenaz: seu cab… A dona Maria II encolheu os
ombros a fim de bolear as arestas do insulto: está nisto desde que veio. Se
assistisse à cena que ela armou para aí com a família o senhor doutor até se
benzia. De curtas e compridas tem-nos chamado de tudo. O médico escreveu no
bloco: cab…, curtas, compridas, riscou um traço por baixo como se preparasse
uma soma e acrescentou em maiúsculas Car… A enfermeira, que lhe espreitava
sobre o ombro, recuou um passo: educação católica à prova de bala, supôs ele
medindo-a. Educação católica à prova de bala e virgem por tradição familiar: a
mãe devia estar rezando a Santa Maria Goretti enquanto a fazia. A Charlotte
Brontë a cambalear à beira do KO químico voltou para a janela uma unha onde o
verniz estalava: alguma vez viu o sol lá fora, seu cab…? O psiquiatra
gatafunhou Car… + Cab… = Grande Fo…,
rasgou a página e entregou-a à enfermeira: percebe?, perguntou ele. Aprendi
isto com a minha primeira mestra de lavores, diga-se à puridade e de passagem
que o melhor clitóris de Lisboa. A mulher empertigou-se de indignação
respeitosa: o senhor doutor anda muito bem disposto mas eu tenho outros médicos
para atender. O homem lançou-lhe, num gesto largo, a bênção urbi et orbi
que seguira uma vez pela televisão: ide em paz, soletrou ele com sotaque
italiano. E não percais a minha mensagem papal sem a dar a ler aos bispos meus
dilectos irmãos. Sursum corda e Deo gratias ou vice-versa. Fechou
cuidadosamente a porta atrás dela e voltou a sentar-se à secretária. A
Charlotte Brontë mediu-o de pálpebra crítica: ainda não decidi se você é um cab…
simpático ou antipático mas pelo sim pelo não co… da mãe. Co… da mãe, meditou
ele, que exclamação adequada. Moveu-a dentro da boca com a língua como um
caramelo, sentiu-lhe a cor e o gosto morno, recuou no tempo até a encontrar a
lápis nos sanitários do liceu entre desenhos explicativos, convites e quadras e
a recordação enjoada dos cigarros clandestinos comprados avulso na Papelaria
Académica a uma deusa grega que varria o balcão com o excesso dos seios,
demorando nele pupilas vazias de estátua. Uma senhora magrinha com ar
subalterno apanhava malhas num canto sombrio anunciada por letreiro a
escantilhão na montra (Malhas Com Perfeissão e Rapidês) tal como os cartazes
pregados às grades do Jardim Zoológico avisam os nomes em latim dos animais.
Cheirava persistentemente a lápis viarco e a humidade e as damas das redondezas
com as compras da praça embrulhadas em papel de jornal vinham queixar-se às
mamas helénicas, em murmúrios desolados, das suas misérias conjugais povoadas
de manicuras perversas e de francesas de cabaré que lhes seduziam os maridos ao
dobrarem em quatro, ao ritmo afrodisíaco da Valsa da Meia-Noite, a nudez
experiente dos quadris. O negro que se masturbava no pátio iniciou para
edificação dos serventes contorções orgásticas desordenadas de mangueira à
solta. L’arroseur arrosé. Incansável, a Charlotte Brontë voltou à carga: oiça
lá seu artolas, conhece a dona disto? E depois de uma pausa destinada a deixar
alastrar no médico o pânico escolar da ignorância assentou uma palmada proprietária
na barriga: sou eu. Os olhos que desdenhavam o psiquiatra raiaram-se de súbito
de tracinhos métricos de duplo-decímetro: não sei se o despeço ou se o nomeio
director: é consoante. É consoante? É consoante a opinião do meu marido domador
de leões de bronze marquês de Pombal Sebastião Melo». In António Lobo Antunes, Memória de
Elefante, 1979, 1983, Publicações dom Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN
978-989-660-091-4.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT