Cortesia
de wikipedia e jdact
«Quando
a mulher do pastor fugiu com um homem ainda jovem e sem um tostão no bolso, o
escândalo não conheceu limites. As suas duas pequenas filhas tinham apenas sete
e nove anos, respectivamente. E o pastor era um marido tão bom! Sim, era verdade
que tinha o cabelo grisalho, mas o bigode era escuro, ele era bonito e elegante
e dominava-o ainda completamente uma paixão secreta pela sua impulsiva e bela
mulher. Por que é que ela se foi embora? Por que é que ela fugiu dali com um
tão grande escândalo de revolta, repentinamente, como se acometida de loucura?
Ninguém dava uma resposta. Apenas as beatas diziam que ela era uma má mulher,
enquanto algumas das mulheres de bom coração se mantinham silenciosas. É que
elas sabiam. As duas filhas pequenas nunca o souberam. Magoadas nos seus
sentimentos, concluíram que era porque a mãe as considerava dignas de desprezo.
Os maus ventos, que nunca trazem nada de bom para ninguém, arrastaram consigo a
família do pastor. Então, quando assim acontece, cuidado! O pastor, até certo
ponto um distinto ensaísta e polemista, e cujo caso suscitara algum movimento
de simpatia entre os homens de letras, recebeu o benefício eclesiástico de
Papplewick. O Senhor temperou os ventos da infelicidade com uma paróquia no
Norte. A casa paroquial era um edifício de pedra, bastante feio, junto do rio
Papple, antes de se entrar na vila. Mais para diante, para lá do sítio onde a
estrada atravessa o rio, encontravam-se as grandes e antigas fiações de
algodão, outrora movidas a água. A estrada subia, às curvas, até às desoladas
ruas de pedra da vila.
Depois
da sua transferência para a paróquia, a família do pastor sofreu profundas
modificações. O pastor, agora pároco, mandou buscar a sua velha mãe e a irmã
dele, bem como um irmão que vivia na cidade. Assim, as duas meninas tinham um ambiente
muito diferente do que existira no antigo lar. O pároco tinha agora quarenta e
sete anos; demonstrara um intenso e não muito dignificante desgosto, depois da
fuga da sua mulher. Senhoras compreensivas tinham-no mantido afastado do suicídio.
O cabelo tornara-se quase branco e a expressão do olhar era trágica e selvagem.
Bastava olharmos para ele para vermos que terrível fora tudo o que lhe sucedera
e como se transformara numa vítima. No entanto, algo soava a falso e algumas
senhoras, que mais compaixão tinham mostrado pelo pastor, detestavam, em
segredo, o pároco. Bem vistas as coisas, havia à sua volta uma certa aura de
farisaísmo.
As
rapariguinhas, claro, daquela maneira vaga que é habitual nas crianças,
aceitavam o veredicto familiar. A avó, que tinha já mais de setenta anos e cuja
vista começava a falhar, tornou-se a figura central da casa. A tia Cissie, que
já passara dos quarenta, pálida e piedosa, consumida por um mal interno, tratava
da lida da casa. O tio Fred, um homem de quarenta anos, mesquinho e de rosto acinzentado,
ia para a cidade todos os dias. Tinha um aspecto esquálido e vivia apenas para
si próprio. E o pároco, claro, era a pessoa mais importante, depois da avó. Chamavam-lhe
a Mater. Era uma daquelas pessoas fisicamente vulgares, velhas e espertas, que
toda a sua vida tinham aberto o seu próprio caminho, bajulando as fraquezas dos
homens. A Mater orientou-se muito rapidamente. O pároco ainda amava a sua
esposa delinquente e continuaria a amá-la até morrer. Portanto, calemo-nos! Os
sentimentos do pároco eram sagrados. No seu coração encontrava-se, como que
encerrada num relicário, a pura jovem com quem ele casara e que adorara. Ao
mesmo tempo e lá fora, no mundo diabólico, vagueava uma mulher mal afamada que
traíra o pároco e abandonara as suas criancinhas, e que estava agora submetida
a um jovem desprezível que sem dúvida a conduziria até à degradação que ela merecia.
Que isto fique bem claro e, depois,... calemo-nos! Pois na majestade autêntica
do coração do pároco ainda florescia a branca e pura flor da sua jovem noiva.
Esta branca flor nunca murchava. Aquela outra criatura, a que fugira com aquele
jovem desprezível, não tinha nada a ver com ele.
A
Mater, que se sentira um pouco desprezada e insignificante no seu papel de
viúva, numa pequena casa, içava-se agora à dignidade do cadeirão principal na
casa paroquial e instalava de novo e com firmeza o seu velho corpanzil. Não permitiria
que a destronassem. Astutamente, soltou um suspiro em homenagem à fidelidade do
pároco à branca flor, enquanto fingia desaprovar. Numa dissimulada reverência
pelo grande amor do seu filho, não murmurou nem uma palavra contra aquela vadia
que florescia no diabólico mundo e que outrora fora chamada senhora Arthur
Saywell. Agora, graças a Deus, e uma vez que ela se tinha casado de novo, já
não se chamava senhora Arthur Saywell. Mulher alguma usava o nome do pároco. A
branca e pura flor florescia in perpetuum, sem qualquer nomenclatura. A
família até pensava nela como sendo A-que-fora-Cynthia.
Tudo
isto era água para o moinho da Mater. Dava-lhe a garantia de que Arthur não voltaria
a casar-se. Mantinha-o seguro pelo seu ponto mais fraco, pelo seu acobardado
amor-próprio. Casara com uma imperecível, uma branca e pura flor. Que homem de
sorte! Tinham-no magoado! Oh, homem infeliz! Sofrera! Ah, que coração cheio de
amor! E ele tinha perdoado! Sim, a branca e pura flor fora perdoada. Até
contara com ela no seu testamento, enquanto aquele outro patife..., mas
silêncio! Não se deve sequer pensar demasiado naquela horrível vadia, à solta
no vil mundo exterior! A-que-fora-Cynthia. Deixemos que a branca flor
floresça inacessível nos píncaros do passado. O presente é outra história». In DH
Lawrence, A Virgem e o Cigano, 1926, Editora Assírio & Alvim, 1984, colecção
O Imaginário,
ISBN 978-972-370-164-7.
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