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Memória
«(…) Nunca sei o que em mim é memória ou
recriação. E nesse meu engenho de poeta, julgo-me melhor no inventar dos
versos, postos mais na intimidade do peito e bem menos no alento do corpo e seu
fogo; e se nele mal se reacende a chama logo me apresto a apagá-la, faço-o sem
o menor regozijo, desejando eu pelo contrário ateá-la. Mas a razão sempre se
encarrega de me lembrar quanto o coração debilita, a ponto de me levar a
esquecer como o bem e o mal se assemelham, tal como o mar e o rio, que na sua
branda fusão na mesma foz se misturam. Continuo no entanto atenta aos prazeres,
mesmo se vindos pelo lado da sombra, lamentando não ter sido mais voraz, mais
tenaz, mais implacável, sem arrependimento de nada. E apesar de o tempo ter em
parte atenuado o ruído da paixão e do ressentimento, reconheço o pulsar do
incautelado amor nas minhas veias, assim como o incontornável caudal da ira,
sinal inequívoco do quanto estes sentimentos continuam a fazer-me vibrar. Na
determinação inquebrantável de me manter intacta. Hoje já não me iludo ao
reconhecer os sinais do desassossego, consciente do pouco que me sobeja, mas
também daquilo que em demasia me falta; a confrontar a lividez do presente com
o fogo e o fulgor do passado, quando exigia da vida o impossível, pois então
tudo me parecia fácil, tomada por emoções, que na altura, sabia, só poderiam
parecer condenáveis; e por isso encobri paixões ou iludi-as, simulando
submeter-me, fingindo ser o meu avesso, embora interiormente inconformada com
os limites impostos pela condição de mulher. Ambiciosa como madame du Châtelet,
à revelia da vontade de Voltaire.
Ontem, dentro de um volume de poesia de
Byron, descobri sonetos escritos nos meus primeiros anos de exílio em Londres,
sendo neles bem visíveis não só as raízes como também a floração da trepadeira
da desobediência, num obstinado e contínuo crescimento. Quantas vezes perdi e
reganhei alento para ir mais além, apesar da nenhuma protecção, a percorrer
decidida as estradas da Europa. Dessa época guardei a forte determinação que só
agora, depois de velha e julgando-me acabada, há quem pareça apreciar enquanto
traço do meu carácter e personalidade; sem se aperceber como o fogo se mantém aceso
no meu peito, nem como continuo sufocando diante da mediocridade, negando-me a
permanecer desmerecida num terreno devastado, onde nenhuma planta vinga, por
entre cardos e espinhos. Não acende um
só suspiro. Chama que devo apagar: siga-se à dor o silêncio. Vencer é saber
calar. Mas não terei eu,
afinal, calado demasiado de mim mesma?
Na verdade muito se fez a fim de me
anularem, destruírem-me os anseios, o voo, impedindo-me de cumprir os meus
maiores desejos e vertigens. Por isso, quando hoje quero ir atrás das próprias
pegadas, só o consigo fazer se seguir pelo terreno da palavra escrita, pelo
corpo da poesia. Quantas vezes senti estar a fazer a travessia de um infindável
deserto por demais hostil? E apesar de tudo teimei em atravessá-lo, na obstinação
de descobrir um oásis onde pudesse encontrar água para a minha sede, sombra
para o meu impiedoso sol, suavidade para temperar a minha intranquilidade e
desassossego. Impossível refrigério para quem como eu tão depressa se aceitava
e lutava desejando ser aceite, como se recusava e diante do rejeite dos outros
quase se perdia. Será que a minha vida poderia ter sido diversa? Os dezoito
anos que me vi forçada a passar no convento de São Félix, em Chelas, pela
suprema vontade de um déspota, cedo me determinaram a existência, pois ao
condenar à morte os meus avós Távora, ao prender o meu pai nas masmorras da
Junqueira e ao mandar enclausurar a minha mãe num mosteiro, comigo e a mana
Maria no rasto e sombra da sua saia, julgou Sebastião José Carvalho Melo salgar
o chão do meu destino.
1754-1758
Apanham do chão as pedras rasas e repletas
do sol da tarde, pedras dóceis que raramente se adaptam à curta fundura das
palmas curvas das mãos pequenas, que as atiram de seguida voando baixo na
direcção da brilhante cortina de água e por vezes atravessando-a a perderem-se
do outro lado, que ambas desconhecem. Mas Leonor sabe inventá-lo: misterioso na
sua cintilante transparência, terreno de ondinas e fadas, de feras e
feiticeiras; histórias de amazonas, que para lá daquela correnteza de chuva
estremecida, de zimbro, se escondem dos olhares ínvios que lhes arrancariam sem
dó nem piedade a vigorosa força feminina. Narrativas extremadas pelo
entusiasmo, numa mistura de mitos e de lendas, frente a Maria que olha e escuta
a irmã com uma admiração temperada pela desconfiança contida: a mana inventou
isso tudo, julga que não sei? Eu não sou tola! Mas logo ri,
divertida e maliciosa, pedindo mais contos, a empurrar Leonor para urdir outros
enredos, novos passos no relato das aventuras que conta, perpassadas por um tom
arrepiado de encantamento dúbio, onde se vão imiscuir laivos de um vigor
gentil, colorido pela imaginação desvairada, a recriar mistérios a partir do
ambíguo cristal da cachoeira. Cascata que anos depois Leonor recordará no
convento de Chelas, com uma saudade distanciada, nebulosa, e que mais tarde
ainda invocará em poemas nostálgicos por onde perpassam as matas sombrias, as
luzes estriadas, coadas pela ramaria densa e as agulhas escuras dos pinheiros
selvagens. Mas, evitando referir as crianças descalças a fitá-las de longe, as
esmolas dadas aos pobres todos os sábados ao meio-dia no portão dos fundos do
pomar, os odores apodrecidos das humidades recolhidas, dos líquenes, do musgo,
do húmus, das urtigas sonsas escondidas na vegetação aturdida dos atalhos». In
Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio
D. Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
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