quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Um estranho amor. Elena Ferrante. «Perdia a paciência. Voltava rapidamente ao meu italiano, e ela acomodava-se no seu dialecto. Agora que estava morta…»

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«(…) Sabe onde há uma farmácia?, perguntei, mas sem sequer olhar para ele, empenhada como estava num rápido afastamento que poderia abolir o contacto. No Corso Garibaldi, respondeu-me enquanto restabelecia um mínimo de distância entre a massa compacta do seu corpo ossudo e eu. Naquele momento estava como que colado, com a sua camisa branca e o casaco escuro, à fachada do Albergo dei Poveri. Vi-o pálido, bem barbeado, sem espanto no olhar, que não me agradou. Agradeci quase com a ponta dos lábios e corri na direcção que me tinha indicado. Ele seguiu-me com a voz, que transformou de cortês num sibilar insistente e cada vez mais ordinário. Fui atingida por um jorro de obscenidades em dialecto, um mórbido regato de sons que envolveu num misto de sémen, saliva, fezes, urina, dentro de orifícios de todo o género, eu, as minhas irmãs, a minha mãe. Voltei-me de repente, tanto mais estupefacta quanto os insultos não tinham razão. Mas o homem já lá não estava. Talvez tivesse atravessado a rua e se tivesse perdido entre os automóveis, talvez tivesse virado a esquina para Sant’Antonio Abate. Lentamente, deixei que as batidas do coração se regularizassem e desaparecesse uma desagradável pulsão homicida. Entrei na farmácia, comprei uma embalagem de tampões e voltei ao bar.
Cheguei de táxi ao cemitério, mesmo a tempo de ver o caixão descer a um tanque de pedra cinzenta, que foi depois cheio de terra. As minhas irmãs foram-se embora logo a seguir ao enterro, de automóvel, com os respectivos maridos e filhos. Não viam a hora de voltar para casa e esquecer. Abraçámo-nos e prometemos voltar a ver-nos em breve, mas sabíamos que tal não sucederia. Trocaríamos no máximo alguns telefonemas para avaliar de vez em quando a crescente taxa de recíproco afastamento. Há anos que vivíamos as três em cidades diferentes, cada uma com a sua vida e um passado comum que não nos agradava. As raras vezes que nos víamos, preferíamos calar tudo aquilo que tínhamos a dizer umas às outras. Depois de ficar só, pensei que o tio Filippo me convidaria para sua casa, onde tinha estado hospedada nos dias anteriores. Mas não o fez. Tinha-lhe dito de manhã que precisava de ir a casa da minha mãe, tirar os poucos objectos de valor afectivo, cancelar o contrato do aluguer, da luz, do gás, do telefone, e ele provavelmente pensara que era inútil convidar-me. Afastou-se sem me cumprimentar, curvado, em passo arrastado, consumido pela arteriosclerose e por aquele imprevisto enfarte de velhos rancores que lhe faziam vomitar insultos fantasiosos.
Fiquei assim esquecida na estrada. A multidão dos parentes refluíra para a periferia de onde tinha vindo. A minha mãe fora enterrada por coveiros mal-educados no fundo de uma cave que cheirava mal, a cera e a flores murchas. Eu tinha dores de rins e cólicas no ventre. Decidi-me de má vontade: segui ao longo do muro quente do Orto Botanico até à Piazza Cavour, num ar que se tornava mais pesado devido aos gases dos automóveis e ao zumbido de sons dialectais que eu decifrava contra a vontade. Era a língua da minha mãe, que tentara inutilmente esquecer junto com tantas outras coisas suas. Quando nos víamos em minha casa, ou eu vinha a Nápoles para visitas rapidíssimas de meio dia, ela esforçava-se por usar um trabalhoso italiano, eu resvalava com aborrecimento, só para a ajudar, no dialecto. Não um dialecto alegre ou nostálgico: um dialecto sem naturalidade, usado imprecisamente, pronunciado de maneira forçada como uma língua estrangeira mal sabida. Nos sons que eu articulava pouco à vontade, havia o eco das disputas violentas entre Amalia e o meu pai, entre o meu pai e os parentes dela, entre ela e os parentes do meu pai. Perdia a paciência. Voltava rapidamente ao meu italiano, e ela acomodava-se no seu dialecto. Agora que estava morta e que teria podido apagá-lo para sempre, junto com a memória que veiculava, senti-lo nos meus ouvidos causava-me ansiedade. Usei-o para comprar uma pizza frita recheada de requeijão. Comi com prazer, depois de dias de quase jejum, em pé, deambulando por jardins desfigurados por miseráveis loendros e vagueando com o olhar por entre os numerosos velhos em grupos. O vaivém obsessivo de pessoas e automóveis por trás dos jardins decidiu-me a ir a casa da minha mãe. O apartamento de Amalia ficava situado no terceiro andar de um velho edifício coberto com tubos de andaimes Innocenti». In Elena Ferrante, Um Estranho Amor, 1995, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2005, ISBN 972-202-879-0.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT