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Universos
Sonoros da Escrita. Música e dialéctica da escuta
«(…)
Nas condições correntes de fala, no quotidiano, raramente as alterações do médium
acústico são (consideradas em si mesmas) objecto de representação ou de
descodificação. Por exemplo, num concurso para locutor radiofónico, é testada a
voz dos candidatos, e, portanto, o que conta são os estados do medium e
não a mensagem ou os signos linguísticos veiculados. Mas fora de situações
deste tipo, os níveis que prevalecem na comunicação falada são o terceiro, o da
representação por substituição ou signo convencional, e o segundo,
representação do todo pela parte. Já na música se dá, e desde tempos ancestrais,
uma verdadeira inversão da hierarquia. A representação por transformação e a
descodificação de sintomas de transformação ganha aí enorme importância sociológica:
determinam se o instrumento que se pretende vender ou adquirir tem ou não a
sonoridade adequada, se a voz é adequada à admissão num coro e qual é a sua
tessitura, se o músico entoou com exactidão a altura dos sons que lhe competem
numa prática mágica ou se merece a morte imediata por ter falhado e desse modo
suscitado a ira dos deuses (dado que qualquer desvio de uma fórmula já
consolidada na prática liquidava o seu efeito mágico e podia suscitar a ira dos
poderes sobrenaturais, a rigorosa fixação dos padrões das alturas tornava-se no
sentido do termo uma questão vital, e cantar mal um crime a ser expiado, não
raro castigado com a morte imediata do culpado, e daí a extraordinária força
conferida aos intervalos estereotipados mal entram por qualquer razão canonizados)
Em A Tragédia da Rua das Flores, de Eça de Queirós, num serão em casa de
Madame de Molineux, em que se canta ópera e um dos convidados é um primo
uomo do S. Carlos, a anfitriã é cumulada de elogios, quando ela própria faz
demonstração dos seus dotes vocais: tem uma fortuna na garganta!, comenta um
dos presentes.
É
uma situação típica de descodificação de sintomas de transformação. A lisonja
significava que a amadora burguesa tinha voz para fazer carreira profissional
como prima donna. A história da música está cheia de casos reais
similares, de Farinelli a Pavarotti. Tudo começou para eles com a matéria-prima
vocal, isto é, a representação e a descodificação de sintomas de transformação.
Coisa que, por contraste, não tem obviamente qualquer relevância para o maior
ou menor êxito noutras profissões. Originariamente a música nasce ligada ao
mundo vivido, não está separada deste nem organizada num sistema autónomo
independente das funções mais imediatas do quotidiano. Cantar e tanger
instrumentos, normalmente em associação com a dança, são, por exemplo, práticas
comuns em cerimoniais mágicos ou de culto, largamente documentadas na
iconografia e noutros testemunhos histórico-arqueológicos ou, ainda hoje, pela
observação directa de estudiosos de culturas tradicionais europeias ou
extraeuropeias. Em tais situações, ou noutras equiparáveis, rituais fúnebres,
festivos, etc., a que poderíamos chamar, por comodidade, situações
etnográficas, o modelo de comunicação musical é fundamentalmente o da
representação do todo pela parte (do lado do produtor) e da descodificação de sintomas
contextuais (do lado do receptor). Estamos em cheio no já referido segundo
nível de comunicação.
Neste
caso, e como bem acentua Kaden, há uma ligação orgânica de ambos, tanto do
produtor como do receptor, ao todo representado no processo musical. Os
elementos da comunidade são todos simultaneamente emissores e receptores, pois
todos estão envolvidos activamente no ritual. Há casos em que só alguns é que
tocam, cantam e dançam, e outros casos em que a comunicação musical é
generalizada. Mas todos os procedimentos estão organicamente estruturados, quer
os especificamente musicais, quer os não musicais, e remetem uns para os outros
numa rede de rectroações que mutuamente se condicionam (estrutura de
comunicação coloquial). Se nos concentrarmos nos eventos sonoros a que chamamos
música, então qualquer elemento envolvido na comunicação, ao fazer música, está
a apontar de uma forma implícita para o contexto a que ela se encontra
organicamente ligada». In Mário Vieira Carvalho, Escutar a
Literatura, Universos Sonoros da Escrita, Edições Colibri, Universidade Nova de
Lisboa, CESEM, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-689-427-6.
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