terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Escutar a Literatura. Vieira Carvalho. «Há casos em que só alguns é que tocam, cantam e dançam, e outros casos em que a comunicação musical é generalizada. Mas todos os procedimentos estão organicamente estruturados»

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Universos Sonoros da Escrita. Música e dialéctica da escuta
«(…) Nas condições correntes de fala, no quotidiano, raramente as alterações do médium acústico são (consideradas em si mesmas) objecto de representação ou de descodificação. Por exemplo, num concurso para locutor radiofónico, é testada a voz dos candidatos, e, portanto, o que conta são os estados do medium e não a mensagem ou os signos linguísticos veiculados. Mas fora de situações deste tipo, os níveis que prevalecem na comunicação falada são o terceiro, o da representação por substituição ou signo convencional, e o segundo, representação do todo pela parte. Já na música se dá, e desde tempos ancestrais, uma verdadeira inversão da hierarquia. A representação por transformação e a descodificação de sintomas de transformação ganha aí enorme importância sociológica: determinam se o instrumento que se pretende vender ou adquirir tem ou não a sonoridade adequada, se a voz é adequada à admissão num coro e qual é a sua tessitura, se o músico entoou com exactidão a altura dos sons que lhe competem numa prática mágica ou se merece a morte imediata por ter falhado e desse modo suscitado a ira dos deuses (dado que qualquer desvio de uma fórmula já consolidada na prática liquidava o seu efeito mágico e podia suscitar a ira dos poderes sobrenaturais, a rigorosa fixação dos padrões das alturas tornava-se no sentido do termo uma questão vital, e cantar mal um crime a ser expiado, não raro castigado com a morte imediata do culpado, e daí a extraordinária força conferida aos intervalos estereotipados mal entram por qualquer razão canonizados) Em A Tragédia da Rua das Flores, de Eça de Queirós, num serão em casa de Madame de Molineux, em que se canta ópera e um dos convidados é um primo uomo do S. Carlos, a anfitriã é cumulada de elogios, quando ela própria faz demonstração dos seus dotes vocais: tem uma fortuna na garganta!, comenta um dos presentes.
É uma situação típica de descodificação de sintomas de transformação. A lisonja significava que a amadora burguesa tinha voz para fazer carreira profissional como prima donna. A história da música está cheia de casos reais similares, de Farinelli a Pavarotti. Tudo começou para eles com a matéria-prima vocal, isto é, a representação e a descodificação de sintomas de transformação. Coisa que, por contraste, não tem obviamente qualquer relevância para o maior ou menor êxito noutras profissões. Originariamente a música nasce ligada ao mundo vivido, não está separada deste nem organizada num sistema autónomo independente das funções mais imediatas do quotidiano. Cantar e tanger instrumentos, normalmente em associação com a dança, são, por exemplo, práticas comuns em cerimoniais mágicos ou de culto, largamente documentadas na iconografia e noutros testemunhos histórico-arqueológicos ou, ainda hoje, pela observação directa de estudiosos de culturas tradicionais europeias ou extraeuropeias. Em tais situações, ou noutras equiparáveis, rituais fúnebres, festivos, etc., a que poderíamos chamar, por comodidade, situações etnográficas, o modelo de comunicação musical é fundamentalmente o da representação do todo pela parte (do lado do produtor) e da descodificação de sintomas contextuais (do lado do receptor). Estamos em cheio no já referido segundo nível de comunicação.
Neste caso, e como bem acentua Kaden, há uma ligação orgânica de ambos, tanto do produtor como do receptor, ao todo representado no processo musical. Os elementos da comunidade são todos simultaneamente emissores e receptores, pois todos estão envolvidos activamente no ritual. Há casos em que só alguns é que tocam, cantam e dançam, e outros casos em que a comunicação musical é generalizada. Mas todos os procedimentos estão organicamente estruturados, quer os especificamente musicais, quer os não musicais, e remetem uns para os outros numa rede de rectroações que mutuamente se condicionam (estrutura de comunicação coloquial). Se nos concentrarmos nos eventos sonoros a que chamamos música, então qualquer elemento envolvido na comunicação, ao fazer música, está a apontar de uma forma implícita para o contexto a que ela se encontra organicamente ligada». In Mário Vieira Carvalho, Escutar a Literatura, Universos Sonoros da Escrita, Edições Colibri, Universidade Nova de Lisboa, CESEM, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-689-427-6.

Cortesia EColibri/JDACT