sábado, 3 de dezembro de 2016

Nas Tuas Mãos. Inês Pedrosa. «Quando agora olho tranquilamente para as fotografias da vossa juventude, vejo dois rapazes elegantes procurando atenuar pela distinção dos adereços, os chapéus de aba larga»

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«A tua cabeça rodou na direcção do meu rosto, os teus olhos fecharam-se e a tua boca avançou para a minha, através de uma lenta rota de luz, risos e lágrimas. Quando os teus dentes morderam os meus lábios alguém gritou Bravo! como na ópera e eu soube que nunca uma rapariga havia sido assim amada. Espere, dizias tu, connosco há-de ser diferente. Travavas-me o corpo todo com um beijo na palma da mão, os meus dedos agarravam-se, entontecidos, à curva funda das tuas pálpebras, e desse canto macio de pele eu inventei um homem para sonhar até ao dia branco da nossa eternidade. António. Dou-te esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade. António. Muito prazer. Chamo-me António José Castro Morais mas toda a gente me trata por To Zé. Raptaste-me ao terceiro dia: Jennifer. Diga à sua mãe que hoje está muito cansada para passear e venha comigo ver a vida verdadeira. O meu nome é Jenny, porque o pai que eu não cheguei a conhecer adorava a heroína da Família Inglesa do Júlio Dinis, uma família aliás semelhante à nossa no culto discreto da riqueza como prolongamento físico da solidez espiritual. Mas tu, António, preferias outra coisa. Eu restituía-te o nome de origem, nem sequer era capaz de pronunciar esse diminutivo portátil que te fazia de toda a gente, e tu inventavas-me para lá do livro de onde eu tinha saído.
Naquela época parecia-me que estas intenções contrárias eram a mesma, um código de segredo automático que escrevia a grande evidência do amor. Só na noite do nosso casamento descobri que havia outra pessoa que te soletrava António, querido. Meu querido. Cuidado. É o auge do sol e todas as formas da montanha se rendem ao totalitário peso da luz. Vais andando, com os binóculos apontados ao mais longínquo dos cumes, e de repente vejo o teu pé direito no ar, sobre o precipício. Grito cuidado e abraço-te pelas costas, cais sobre mim no alto de Meteora. Pões um braço sob a minha cintura, e a tua face recortada a contra-luz rasga-me com a insuportável beleza de uma aparição. Como te chamas, anjo-da-guarda? Foi a única vez em que me trataste por tu. Fizeste o resto da viagem connosco, nesse Verão de 1935. Vinhas dos Mosteiros do Monte Athos, onde nem a sombra de uma mulher se permite, nós vínhamos da desilusão de Atenas, que a minha pobre mãe definia incessantemente como a viúva alegre dos Deuses, para dar a entender que era culta, mordaz e muitíssimo viúva. Não me lembro de nenhuma das másculas estátuas dos museus de Salónica, apenas manchas de mármore sobre as quais os teus dedos evoluíam, longos, quase impúdicos pela transparência dos ossos e das unhas. Esse fascínio pelos teus dedos valeu-me meia dúzia de vitórias ao gamão, no dia em que me levaste às escondidas a ver a vida verdadeira nas sombras sumptuosas das igrejas ortodoxas e nos cafés do cais, povoados de velhos marinheiros gregos com gestos muçulmanos. Explicavas-me as regras mas eu não conseguia ouvir-te, embrulhava-te a voz na velocidade das palavras e na cor incerta da íris, quando sorrias era verde-clara e depois tornava-se castanha, o nariz afilado, perfeito e imóvel como uma decisão, a boca excessiva destoando, lábios grossos com os cantos virados para baixo como uma permanente trincheira de desconfiança.
Nunca fui de falar muito. A minha mãe reforçava convenientemente a minha incomunicabilidade doutrinando-me na lei da poupança verbal: uma ideia, meia palavra. Seguia-te desesperadamente o trilho dos dedos sobre as peças de madeira para que me julgasses inteligente, capaz de te vencer. Nunca mais voltaria a ganhar-te. Dizem que o amor se faz de uma comunidade de interesses subterrâneos, restos de vozes, hábitos que nos ficam da infância como uma melodia sem letra, paixões pisadas na massa funda do tempo, mas nesses anos entre guerras os sentimentos explicados não interessavam a ninguém. O amor era então uma criação fulminante do tédio e da inocência, feito do carnal recorte da beleza, magnífico de crueldade. Amei-te de repente, com a luminosa injustiça que me afastou de todos os que me amaram por me serem semelhantes. Amaram-me ainda mais depois, durante o nosso longo noivado, que me tornou mundana, e adoraram-me a partir do dia em que me fiz oficialmente tua mulher, ouvia-os sussurrar que estranho, está cada vez mais menina, nunca se viu um caso assim.
Namorámos em bailes e recepções, eu dava-te a mão e o Pedro pegava-me logo na outra mão, sentia a inveja alastrando pelos salões como um perfume sensual, eram meus os dois rapazes mais desejados de Lisboa. Talvez não fossem sequer excepcionalmente bonitos. Quando agora olho tranquilamente para as fotografias da vossa juventude, vejo dois rapazes elegantes procurando atenuar pela distinção dos adereços, os chapéus de aba larga, os foulards de seda lavrada, os coletes italianos, os casacos de ombros largos - certas irregularidades de formas e traços. Eram magros, o Pedro ligeiramente mais alto do que tu e quase macilento». In Inês Pedrosa, Nas Tuas Mãos, Publicações dom Quixote, colecção BIS, 2009, ISBN 978-989-660-000-6.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT